Das tragédias, meio-ser desumano

 



Escondia as peles das mãos, porque nelas podia saber do tempo que passara, enquanto elas eram lisas e devotas a todos. Todos, sem exclusividade nenhuma. Porque assim havia sido, mãos de todos, de passar a ferro e bater nos tapetes, de cozinhar um sem fim de horas para estômagos insaciáveis, de ser gentil e gentil ser ao outro, em todas as vicissitudes. O afeto que conhecera era esse, de se doar fecunda e inteira a todos os rostos assemelhados ao seu, de ser humano. Escondia as mãos para que não lhe vissem as cicatrizes de dores e de circunstâncias que se lhe atravessaram na vida, sem discriminação. As crianças não devem olhar as mãos das mães, com frequência. Convém que os filhos não espreitem as rugas das progenitoras ou veriam a esperança da sua eternidade perdida. E se devia ser proibido que as mães morressem, devia ser igualmente cancelado, os filhos morrerem antes delas.

Ela guardava a sete chaves, ainda, volvidas algumas décadas, a escultura do seu desarranjo eterno. Lembrava-se com exatidão de tudo, até da cor da roupa que ele trazia naquele dia. A cor da pele sem viço, cianosado do seu menino azul.

Foram anos perdidos no expediente, nos horários que inventara para escapar da outra dor que o levara. Não suportava ver barrigas de grávida, não era olhar as mulheres, mas as suas barrigas que transportavam filhos sem dizerem da sua data de expiração, sem verdade nenhuma acerca da eternidade filial. O corpo dele jazia há muito, sete palmos abaixo da terra, mas ela trazia-o nos olhos, nos gestos dos outros e até nos seus próprios, quando parava para digerir discursos sobre a depressão e sobre as pendências que a atormentavam. Quando chegava a casa, não olhava para o balcão da cozinha, nem para o cesto da roupa, nem para a mudança das estações, nem para as promessas musicais ou políticas, que o tempo não perdoava, nem os seus arrependimentos colossais e nem sequer as obrigações de escolher, com algum critério, a sua morada permanente. Atirava a bolsa e os sapatos para longe da vista, ligava o aparelho de ruído, que alimentava a ilusão de gente à sua volta e, corria para o quarto, deitando-se em posição fetal. Para dois minutos a seguir, se erguer assarapantada, pelos risos que passavam na televisão! Como se atreviam a rir todos da sua dor dantesca? Como se atrevia a vida a continuar, depois da dor que a cilindrava contra o colchão da cama, contra as escalas de noites e dias a servir os outros, nem o tempo se sobrepunha a todos os males de uma mãe órfã de filho. E desligava o aparelho, para, de seguida, voltar a ligar, enquanto o dia finalizava e os primeiros raios de luz artificial dos candeeiros de rua lhe adentrarem pelas persianas, avisando que viria mais uma noite sem fim, à vista, sem registo de apaziguamentos. E o psiquiatra prescrevia as novidades, os novos ansiolíticos, os antidepressivos de última geração, as psicoterapias e as outras terapias alternativas, onde a saúde mental se vendia em doses recomendadas. Adiar as dores para a velhice ou para o tempo que fosse e Deus permitisse. Mas ela não acreditava em Deus, acreditava que o homem que foi à lua, havia de inventar ainda, um antidepressivo para as mães que perdem o seu fruto. E com ele, a bagagem dos amanhãs se faria suportável. Uma mãe sem filhos é como uma casa sem portas, que precisa rasgar véus para poder aceitar o tempo que ainda lhe resta para o encontro! Deus havia de vir em saquinhos de pó solúvel e de sabor agradável, que retirasse a amargura dos filhos dos outros, abraçados às suas mães vivas!

Haveria meia dúzia de pessoas que suspeitavam da sua doença, a da televisão ligada para fugir à solidão que se adia, mas sabia ser temporária. Tal como ela, outras mães e pais havia que, sem querer, sem crer, sem nem aceitar, sabiam que aquela dor não era uma qualquer, igual às outras de se perder um marido para outra mulher, de se perder um comboio para ir noutro, de se perder uma quantia de dinheiro que poderia ser ganho mais à frente! Um dia, a solidão havia de lhe romper as peles das mãos, um dia havia de sair aquela dor insistente pelos veios de sangue das suas mãos elegantes, finas, de pele lisa e unhas amendoadas. Um dia, Deus romperia com todo aquele pardieiro de sensações asquerosas de haver vida depois da morte de um filho! Deus sabia o que era perder um filho, mas metade da população mundial não sabia. É justo que se esconda o prazo de validade de uma mãe, porém, nunca será justo que nenhum filho se desprenda da mão da sua mãe até que cresça. O dela partira sem saber o que era a idade adulta, de que era feita a independência, a que se chamava de arbitrário ou transcendental. O dela escapara entre os risos de menino e os traços de mudança previsíveis no adolescente. O seu menino já não jogava à bola, nem corria, nem brincava de simulador, nem gargalhava com os outros miúdos que, depois da sua partida, se esqueceram até do seu nome.

Agora que a idade lhe trouxera tempo de digerir mágoas antigas, agora que os dias não tinham horas decretadas entre o descanso ou o cansaço dos problemas, agora que o tempo se cumpria no vagar da inutilidade, ela pegara na caixa de recordações antigas, das cartas com selos da década de 60, promissórias de missas e viagens que se fizeram, concertos que entraram na contabilidade do tempo de esquecer, a chave da sua morada eterna na mão de peles gastas e lisas, com sinais de tempo, e aquela chave era, então, o desígnio final do fruto que depressa e sem atingir a maior idade, lhe sumiu direitinho ao céu, sem passar pela casa dos namoricos e nem sequer dos livros que foram ficando a meio das estantes desarrumadas. Aquela chave tinha uma morada, a última morada, a dita a que entregaria ao senhor do taxi, quando a chamassem para o desfecho final. 

- A senhora pretende mesmo ir para o cemitério?

-Não, cavalheiro, entendeu-me mal, o que eu quero é ir ter com o meu filho que está largado da mãe há mais de meio século! É mesmo para lá que eu quero ir. 


E eu já vou aos treinos de ligar as televisões do mundo todo, incluindo plasmas e high techs, porque, cá dentro já me recuso a enxergar o dia em que, para ela ir ter com o seu filho ido, eu estarei a ver partir uma mãe que se quer eterna, pois é assim que todas as mães devem permanecer. E ando já a treinar domesticar as ansiedades e dores de peito que me podem ocorrer sem aviso prévio, que isto de se ser órfão de seres humanos faz-nos mais desumanos, tentando encontrar os diabos que nos matam as horas e Deus virá, sem doses de pó solúvel, salvar-nos da apatia que promete congelar as veias perante a tão grande desumanidade que causa a perda e o apego.

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