Meia hora de caminho e hora e meia de voo
Escudei-me na ilusão. Palavras rodopiavam no vento da boca que as proferia. Na minha, em último caso, nos meus contínuos monólogos de desespero e esperança. A dualidade acompanhou-os sempre, ora num sorriso a meia haste, com uma bandeira branca de interlúdio, ora na sofreguidão da dor e de um rosto em estado permanente de mar. Todas as palavras que nos dei, me dei, lhe dei, foram as ilusões que mantive, ignorantemente displicente, incapaz de lhe mostrar o horizonte que eu própria via, ali, na minha frente, na linha desse horizonte que continha a sua volta em suspenso. Ele não voltava. Nunca voltou. Jamais voltaria. E eu que não sabia ainda partir, me mantive cativa dessa mescla de enganos que arrastava para o dia seguinte, perpetuando-os num futuro comprometido, desconhecia, portanto, que o futuro não existia. Agora que o sei, agora que o pude confirmar, com o olhar de um estranho, que as suas palavras ainda ecoam dentro de mim, agora que não há mais futuro no nós que segurei em mim, que os sonhos que acalentei morreram estatelados ontem, era-me absolutamente obrigatório aceitar e ser capaz de despedir-me dos destroços deles, que se agarraram como náufragos, como itens de materialização duvidosa. até ontem, eram eles que me faziam submergir de Hades até Gaia, que me operavam luz entre sinapses obscurecidas pela densidade terrena. Até ontem, ele era o meu totem, o meu arco-íris, estrela vespertina e eu a sombra, leve e volúvel da memória, qual santuário, no qual me arrastava, de joelhos, de rastos, de bruços, até perder todas as minhas forças.
Depois de alimentar a sombra das palavras, de inspirar o eco do silêncio que ele me devolvia, entrei no duche, enchi-me de pressa para resolver pendências e voltar ao estado fetal, onde dedico a maior parte do tempo, ermita voluntária e penitenciada pelo poder dado aos outros.
Acabei de ler Han Kang, o último dela. Não me apaziguou, embora tivesse gostado da mensagem. Despedidas impossíveis.
Ontem, vesti uma saia de malha que me permitia dar passos maiores, se tivesse que fugir da chuva, vesti uma camisola de malha mais fina, uma gabardine e umas botas, depois de passar um risco nos olhos e um pincel de brilho e cor nos lábios mortos, cuja aparência é semelhante a quem não fala, não profere palavras há décadas. Passei na bomba de gasolina e pedi o aditivado de sempre, com o mesmo olhar de sempre, economizando palavras, as mesmas palavras de agradecimento de sempre e dirigi-me ao mesmo local de sempre. Paguei contas, levantei dinheiro, deitei os olhos ao corredor de promoções onde as pellets se misturam à ração canina de quinze quilos em falsa promoção. Os polares, as mantas, os pufs e as roupinhas de animais, o lucro, a expectativa do lucro, a expectativa sempre presente do consumidor gastar mais do que necessita. Sopas de letras entre semanários de notícias antigas e complementos de ontem. Tomei o café antes de entrar nos corredores diversos de necessidades básicas e sentei-me no lugar onde me sento sempre que há disponibilidade do mesmo. Os livros na minha direita, dispostos em três prateleiras diminutas, sendo que a última é dedicada às crianças, esses consumidores esfomeados que jogam as suas expectativas e desejos nos pais, para triangularem o consumo com o desejo, com a chantagem, com a fome de se satisfazerem no que não lhes acrescenta satisfação. Tal como aos adultos.
Sorvi o café em goles pequenos, apreciando um dos poucos prazeres que se mantém intacto ao longo dos anos. Depois de passar os olhos nas prateleiras que não acrescentam nenhum dos livros do meu interesse, ergui-me para depositar o tabuleiro no armário encostado para esse propósito, peguei no carro e, enquanto caminhava, senti-me observada. Olhei devagar para as pessoas que se dispunham na carreira vazia para a passagem e um homem de barba curta e branca, com uns óculos de tartaruga, pequenos e alongados desviou o olhar para o seu jornal semanário. Não conhecia e francamente, não era o tipo de pessoa que parasse por aqueles lados, todo ele me parecia deslocado do habitat onde, certamente, pertencia. Esqueci o assunto, não sem antes, na entrada do corredor do pão e entre vitrines, deitar um olhar entre os donuts e o funcionário da cafetaria, ao estranho que, mantinha o jornal nas mãos aberto, mas de costas voltadas, o seu olhar preso e invasor, direto ao meu, entre as prateleiras envidraçadas da padaria. Desviei novamente o olhar e obriguei-me às tarefas do tédio que me assola nas superfícies comerciais. Saco do pão, quatro unidades, saco de salgados, um lanche, saco de doces 3 donuts. Sem voltar o olhar atrás, fui ao corredor de legumes, uma lasca de abóbora, um molho de espinafres, 3 cabeças de alho, mais à frente, meia dúzia de ovos. Consultei a lista com a letra do meu filho, pack de água, iogurtes da avó, nos frascos de vidro e manteiga líquida. Bifes de frango pf. Que era a forma dele dizer não te esqueças. Não me esqueci. Bolacha de água e sal da crackers, granola da avó, garrafa de vinho para a avó, foi o Galitos, o primeiro que me apareceu à mão. O Valdeus de bónus. O detergente para a máquina de lavar, o saco de cuequinhas da Lindor para a avó. Toalhitas, 2 unidades, para todos, não esquecer de maçã supriega, de uva sem grainha e de uma pizza das que eu gosto. Para ele. Ah, um pack de leite e ração para os gatos. A pílula da cadela e se não te esqueceres, traz-me pringles. E não me esqueci de nada. Nem das luvas de latex. Nem dos rebuçados de mentol que não constavam na extensa lista. Nem do carapau fresco que era do dia anterior. E claro, depois de carregar tudo e liquidar a existência, depois de abrir a mala e empurrar-me para a prisão sem grades, depois de chegar e enviar sms ao Tomás para vir cá fora ajudar-me a descarregar tudo, depois de voltar a reforçar os pratos dos gatos e dos cães, depois de dar o lanche à minha mãe e de, em menos de 3 minutos guardar carnes e peixes, frutas e legumes, vim ao quarto despir-me e voltar a enfardar o velho pijama de algodão, de abrir a janela e ficar a ver as gotas de chuva caírem musicalmente no tanque em frente, aquietando-se, recebi a visita invulgar, única de um peneireiro que, durante aproximadamente 3 ou 4 minutos me guiou os olhos e me escoltou. Um a dois metros nos separavam. Nunca tinha visto aquele pássaro na minha frente e passou-me pela cabeça sair da janela para ir buscar o telemóvel e fotografá-lo, mas não ousei mover-me. Ele sim, depois de estar voltado para mim, virou-se no sentido contrário e deixou-se admirar. Um falcão peregrino defronte dos meus olhos. Quando levantou voo, ouvi o seu piar e pareceu-me ser um gemido agudo e um pouco irritante. Uma asa triangular larga e curta e um rabo pouco comprido para a sua dimensão. Lembrei-me do olhar do estranho de barba branca, na cafetaria do continente. E voltei a pensar em Deus. Que andávamos todos misturados entre linhas do tempo, aves e humanos, mensagens e verbos proferidos, para dizer vida, sinal, paciência, desígnio e coincidência, pombas e rolas, beirais e cotovias, penas e ovos, e mais poesia, e eu preferia esta prosa, mantendo-me a uma distância segura e confortável da ignorância desatada da televisão, dos programas e talkshows onde o supérfluo se edificava, onde se afrouxavam os humanos que jogavam a existência entre o ridículo e a epifania, a mestria do disfarce e do engano e a sangria de fim dos mundos. E eu tinha acabado de entrar em contacto com o meu xamã. Aquele falcão peregrino que em terras nacionais davam o nome de peneireiro que só queria dizer que possuía a qualidade de perscrutar a caça, pausando ou estacionando em céu alto, batendo as suas asas, estacionado entre dimensões.
Dediquei, depois, meia hora a ouvir todo o album do Art Garfunkel, Scissors cut, enquanto a chuva e a névoa me mantinham em pura ligação com o passado.
Ontem é passado. Hoje é todo o tempo que me sobra neste agora, onde sirvo um gelado aos habitantes da casa e me aquieto novamente, com um filme na três dê. Miss Marx. Filme biográfico.
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