Limitações, crenças & as consequências de qualquer ditadura

 



Quando entrei para o meu mestrado de Psicologia Clínica, na Universidade Lusófona (ex-moderna onde frequentei o 1º ano de Direito), não estava preparada para aceitar uma especialidade que não era a minha primeira opção, debati-me, aguardei que houvesse alunos suficientes para a turma de Saúde e Stress no ramo de adulto e terceira idade, mas não chegou a haver, naquele ano em que entrei, 2010, alunos suficientes que se pudessem traduzir na autonomia de uma turma para essa mesma especialidade e, ainda não havia a psicogerontologia, nem na Lusíada, onde efetuei a minha licenciatura em Psicologia da Saúde e nem tinha conhecimento de onde houvesse tal. Interessava-me conhecer os meandros e fases individuais e coletivas da passagem do tempo entre o adulto e a consequência de cronos em nós, o idoso, o desenvolvimento desta fase e as estratégias de coping para lidarmos com a velhice ou maturidade que chega, muitas vezes, sem que tenhamos a perceção da riqueza e, em simultâneo das vulnerabilidades que a mesma traz. Ingressei no ramo infância e adolescência, internamente contrariada, porque limitada pela falta de opções. O que eu acreditava nessa altura, continuo a ter como convicção. Das crianças e dos adolescentes, eu acreditava saber o suficiente, era todo o resto da vida que ainda me fazia falta entender. Devo confessar que a psicofarmacologia também me era indispensável, eu com a mania das pesquisas e da sede de saber o que produziam os fármacos antidepressivos de primeira, segunda ou terceira geração. Dos psicotrópicos, do todo desta disciplina que a Lusíada não dispunha para me oferecer, ao contrário, me dava equivalência da mesma sem o conhecimento que comportava a cadeira. Por esses dois motivos, voltei à Lusófona. Fiz o primeiro ano do mestrado e não voltei porque a minha vida pessoal, o meu casamento, apresentavam lacunas que necessitavam de presença constante e discernimento para decisões e, por outro lado, porque dar formação e ser docente de adolescentes me realizava na altura, bem mais do que o mestrado me satisfazia, e precisava de ganhar dinheiro para comparticipar nas despesas da minha casa, na vida dos meus filhos. Não apresentei a tese e empurrei o desfecho com a barriga para o inconcluso. Sempre pensei que iria haver tempo e vontade para a sua conclusão, numa outra altura, que se desenharia pela própria vida. A limitação, pontualmente, das circunstâncias pessoais, encavalitou-se nas minhas costas, pesando muitos quilos na minha existência, como tarefa por terminar, por ausência de paixão. Ainda hoje a vejo como limitação mental. E de circunstancial, deixou de ser contemplada. A vida impôs as suas prioridades. 

Quando era criança, pelos meus nove anos, assim o recordo, acreditava que o mundo era muito maior do que aquilo que eu podia ver, das vivendas S. José, na rua 5 de Outubro, Ermesinde, que Paranhos era a terra que me viu nascer, que o Porto era a cidade que eu gostava de conhecer melhor, ouvindo as conversas dos adultos, nomeadamente do que recordava do meu pai, Lisboa, França, Alemanha, URSS, os EUA, eram tudo caixas cheias de fantasia, que de cotovelos na estante, escolhia os livros da biblioteca do meu pai, onde me esperavam mundos sem fundo, sem vendas e sem proibições. Eu "sabia" que havia muitos mundos, comparativamente ao limite do meu, que era cheio de mesmices e comodidades, repleto de ausências e peculiaridades familiares. Sempre quis conhecer o desconhecido, além das minhas fronteiras físicas. Recordo-me de ir ao cinema com os meus avós, na altura na rua Sá da Bandeira, ver a Pipi das meias altas, Jesus Cristo Superstar, e de ser premiada por conseguir acompanhar a legendagem com outros filmes e peças de teatro. De ler os nomes das lojas por onde passava na baixa e fazer imensas perguntas, dos nomes das ruas, das profissões e da paciência elástica, sempre elástica do avô Rodrigo, que se substituiu, muitas vezes, ao meu pai, que a morte levou bem cedo. De ir dar milho às pombas junto ao atual siloauto e das minhas tias namoradeiras na bela avenida dos aliados de falarem deste e daquele tema de moda, da casa das luvas e dos chapéus, dos neons à noite que as árvores pelas avenidas fora, não conseguiam conter. E de eu querer mergulhar mais e mais longe e mais dentro, devorando os detalhes e as minúcias da minha cidade. Depois, pelos meus dezassete anos, comecei a devorar outras cidades, outros países, entendendo que a vida nos pode oferecer um acidente de nascer limitados pelas coordenadas geográficas ou sociais de um país ou família, mas que teremos que ser nós, em última estância, a desbravar. 

Lembro-me de coisas bem menos alegres e que só aceitei na adultez, sem nunca ter compreendido em concreto, como sejam a falta de maternês entre bebé e mãe, a ausência afetiva e não só de pais, cujos bebés doentes eram levados para longe e procurados apenas nos fins de semana, a correr bem. De crianças fechadas em colégios internos, crianças indesejadas e com progenitores malformados ou imensamente limitados, económica ou mentalmente, das feridas que nos nascem e são pérolas, se as olharmos sob novos prismas e novas perspetivas.  E para os que não se atrevem, como na alegoria da caverna, de Platão, a luz seria uma espécie de cativeiro, devolvendo-nos verdades para as quais não estamos preparados, se usamos as vendas que nos vão sendo colocadas pela família, pela sociedade e pelos seus ditames particulares e universalistas. Pergunto-me se alguma criança estará preparada para entender essas ausências que não são mais do que o suprimento das necessidades básicas que qualquer humano precisa para encontrar o equilíbrio e a constância para esse imperativo que é crescer e desenvolver capacidades.  

Quando a minha sogra veio a primeira vez ver o mar, vibrei com o seu deslumbramento, talvez na mesma medida que ela, porque não era o vento a golpear-me o cabelo que me faria chorar de alegria e espanto. Ela conhecia os rios, de bacias estreitas, os ribeiros de pequenas margens e mansos e as grandes penedias que ladearam a sua infância e adultez. Fixou-se cedo demais, que é sempre cedo demais para nos fixarmos, se não formos árvores e nem casas, e o conformismo, nessa rigidez obrigatória, é tão obstrutor para as sinapses cerebrais que acabamos por acreditar na limitação, seja geográfica, social, política ou pessoal como a normalização de conteúdos implícita às coordenadas a que temos direito. A ignorância torna-se, assim, a fronteira que nos impede de ver mares nunca dantes navegados no contexto pessoal. Como os muros que, se não são derrubados pelo tempo ou pela ação do homem, se mantêm, se apresentam ao olho humano como provas históricas da passagem dos séculos. A ignorância cristaliza-se com a ditadura, com as crenças limitantes, que tal como as roupas antigamente, passavam de geração a geração, de irmão a irmão, a ignorância é a barreira, a contingência à exploração e descoberta do mundo e de quem viemos ser dentro dele. Os que nascem pobres, pobres morrerão, conformados com o destino da estreiteza mental e da pequenez material. E se queremos ser alguém, temos que trabalhar muito e arduamente, e se formos mulheres, temos que o fazer quatro vezes mais, temos que competir quinhentas vezes mais, para demonstrarmos que somos tão aptas para o que nos propomos. Que não se estuda para ser doutor, que já se nasce doutor num berço de oiro, que quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita, que as companhias e amizades ditam quem seremos no futuro próximo e que, tal como os bisavós, os avós e os pais, não passaremos dessa linha circunscrita no tempo, determinada pela resma de ancestrais da nossa linhagem. Sabemos que a ignorância faz quadratura com a permissividade que são opostas e que se atraem, que se perseguem num jogo entre aparências e ocultações. Estamos, claramente, a divagar, a plissar, obstruídos pelas anacronias de passados distantes. O progresso não tem ligação estreita com o consumismo, ao contrário, a evolução exigida é a mudança de paradigma e a dissolução de todas as crenças que serviram, anteriormente, aos nossos ilustres antepassados. Não mais. Deles, teremos a recuperar os valores, visto estarem completamente à mostra, só não vê quem não quer ver, da inversão que sofreram em dezenas de anos, da valorização do capital material ao invés da aposta na valorização constante dos valores humanos. Que são, afinal, a riqueza do espólio da experiência humana, a nível coletivo neste planeta abundante de tudo, até de merda, no momento. E quando digo merda, o que me ocorre é que teremos muito trabalho pela frente, terão as gerações capacidade de inverter sozinhos o polo das divergências, do exacerbar de consumismo que nos levou a esta lixeira a céu aberto? Para onde enviaremos tudo o que não nos faz falta e obstaculiza o desenvolvimento humano? A reciclagem e a desconstrução de modelos demodé estão na lista de prioridades, mas por onde havemos de iniciar esta senda, quando a informação é repassada, baseada em extremismos, populismos e mentiras, fake news e misérias exponenciadas? A guerra é parangona escolhida para desfilar nos media diariamente, como se não fosse o chavão para aumentar o medo, o pânico e a opressão? Não esquecer que todos estes palavrões que desfilam no nosso quotidiano são a ignição e, porque não dizê-lo, a composição perfeita das ditaduras atuais?!

A ditadura mudou de vestimenta, modernizou-se para caber no século vinte e um, como dizem Noam Chomsky e tantos antes dele e tantos depois dele, como faz caso disso Harari, mas é golpe de aparência, uma profícua turbulência intestinal, é vendida barata, meia dúzia de euros, tipo tás a ver aquele gajo que vende chuços no Bolhão, pois é! Não o vês a vender chuços no Verão, só no Inverno ou na sangria de uma tempestade anunciada a meio do dia. Diz o povo que a ocasião faz o ladrão, e faz. São as pérolas da sabedoria popular que se não devem esquecer, mas aprofundar. O que faz falta é pensar o futuro, mas trazer o debate para o agora, uma vez que o ontem foi e é constantemente lacrado, todos os dias, pelo comodismo. Estamos avisados de que precisamos estancar o medo, abrir os olhos do pensamento e articular braços e pernas para que o caminho se desdobre. Os nossos filhos herdarão o pior que soubemos produzir e isto é da responsabilidade de todos os que estão vivos ainda. Foi você que pediu corrupção? Ou dá-lhe jeito a situação, o tacho, a mordomia, de neste governo me encaixo, e no do outro sou marginalizado, vilipendiado, que escolho entre o mal e o pior, ser facho! Porra! Os escravos da ditadura, quer-me parecer, nem sabem que é ditadura, escolherem a margem segura dos ditames sociais, já chega ou querem mais? É pela cegueira, pela cenoura na ponta da cana, que os bolos sempre enganarão os tolos e somos todos farinha do mesmo saco, mas eu é que não sou facho! O fascismo é feio, tem escorbuto e provoca diarreia e disenteria e até dizem que faz bem à pele, misturado com fel das contas offshore, vai lá ver que entrou pobre e saiu rico, tresandando a negociatas e propriedades que nem impostos pagam, a não ser que se pague a uma comissão de ética e moral para averiguar, afinal, de onde lhe advêm tantos predicados, tantos cheques omitidos e pré-datados, que todo o homem tem preço e os seus valores negociáveis na bolsa. Nem que a vaca tussa, não largo o poder e hei-de passá-lo à família, à mobília, aos parentes e amigos influentes e pervertidos, antes de morrer! Vivemos nesta gangorra, mas é ilusão de Sodoma e Gomorra. Tenham vergonha, carago, sentido de estado, que o mundo não vive para isto, morre por isto! E isso e isto são duplamente amplificados com mestria, eu tenho vergonha, uma vergonha atroz, por mim e pelos meus avós, bisavós, trisavós que construíram caminhos e valores que foram deitados ao lixo, sem direito a reciclagem. 

O espanto, a curiosidade e o deslumbramento fazem parte da infância e devem ser promovidos e acolhidos porque é deles que resultam novos modelos de pensar a realidade e a evolução advém do fresco, do jovem atrevimento, da recusa na continuação e proliferação do medo como escusa para rasgar o véu. E tal como a Almerinda, a mulher menina que eu vi descobrir o mar depois dos cinquenta, é sempre tempo de mudar, de inovar e de acrescentar o que de melhor há em nós. Que aqueles penedos imensos no meio do oceano não foram trazidos por mil homens e espetados num areal deserto, mas é preciso dar espaço e contexto à criança que traz uma riqueza desconhecida e inexplorada. E só o podemos valorizar quando lhe damos campo de pesquisa. E será para as crianças que teremos de meter mãos à obra, destruindo, reconstruindo e reconhecendo que as nossas limitações pessoais e coletivas não produzem milagres, ao contrário, são parte do problema e o que precisamos mesmo é, de material para a solução da equação que continua envolta e indevidamente controlada pelo poder do capitalismo selvagem, que é dizer, pela ganância, pela inveja e pela limitação secular de não conseguir alargar as vistas para um horizonte que acreditamos estanque e pequeno. Temos que pensar em grande e isso implica pensar o todo. 

E para essa equação, faz falta a paixão, os talentos e dons que os seres minúsculos que são as crianças e os burros velhos que somos, já nós, trazemos, para juntar à solução procurada. E acreditem que no século vinte e um, contrariando o que diziam os ancestros, burros velhos aprendem línguas, e quem nos garante isso é a senhora das necessidades que nós, cegos, não quisemos ver.  As crianças são poemas, não as reduzam aos vossos esquemas. 

O que tem de morrer em nós é o derrotismo, a anacronia, a apatia, o conformismo, a ignorância, o racismo e a xenofobia, os tabus e preconceitos e os faits divers dos que ganham com as nossas limitações, para fazer nascer o novo. O que tem de morrer, e para isso precisa de atitude e ação, é o velho status quo que engorda nas aparências e na hipocrisia e que regride a nossa esperança para o fétido medo que injetamos nas novas gerações. É necessário expor as feridas e as verdades e chamar os bois pelos nomes e debater o conhecimento e a experiência como as únicas opções de futuro, do complexo colher o simples, da recusa colher a escolha. O resto são tangas, ilusões e materialismo que não têm mais serventia e nem desculpa para constarem do processo evolutivo humano. E deixarmo-nos de preâmbulos e suscetibilidades na abordagem das questões. E não voltar a falsas questões, como sejam o engodo, a política provinciana, a venda de títulos e de pompas e circunstâncias e nos focarmos na abundância coletiva humana. E mais não digo que é verborreia e rima com a diarreia que já produzimos em quantidades consideráveis. Crónica azeda, de difícil digestão, mas haverá sempre um gaviscon como posologia metafórica positiva ou um prozac que funciona como um óculo cor-de-rosa barbie fashion, ou ainda os milagrosos viagra que funcionam sempre, endireitando o torto até à próxima carga! Vendem-se ilusões à meia dúzia e baratas! Não sejam formigas, sejam cigarras que a música faz falta para a motivação da massa. E para mim, sai massa à lavrador, com uma canção de sobremesa.


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