Marta e os Ladrões de sonhos



Bolero do Coronel Sensível que fez amor em Monsanto








Ela tinha o corpo cheio de pedaços de platina. Servira de peão das nicas a vida toda, até ali, desde que se lembrava. Aos 7 foi abusada pela primeira vez pelo homem que dizia ser seu protetor, juridicamente falando. Uma espécie de tutor que lhe permitira ser acolhida como cidadã num país onde não tinha nascido. Marta sempre tinha imaginado uma vida bonita, perfeita não, mas bonita, doce, calma, mas há crianças que já nascem com um alto nível de sofrimento, para que venham a tomar tais lições para ensinarem, mais tarde, aos do seu entorno, as responsabilidades sociais assumidas. Sempre tinha ouvido dizer, por vários protagonistas da sua vida e em tempos diferentes que Deus só nos dá a cruz que sabe podermos carregar. Que sabia Deus dela, pensava Marta, ainda a procissão não ia no adro. Aos oito anos de idade, engravidou de uma violação. Tudo foi escondido, bem ou mal-escondido, para sua desgraça? Não! Ser mãe tinha-se assemelhado para ela como uma missão. E dali, da sua barriga, nasceram 13 crianças. Eu olhava-lhe os olhos que eram doces, mas o perfil de uma guerreira, uma lutadora. No circo, tinha feito malabarismos, trapezisses e palhaçadas, mas quando as luzes apagavam, quando os humanos e os aplausos desapareciam, começava o seu sofrimento maior. Porque ser mãe era melhor que ser filha, mas não poder ser mãe era proporcionalmente pior do que ter nascido. A escravidão tratava-a por tu. A solidão era uma benesse da qual usufruía raras vezes. Chegou a pensar em fugir. Não importava pra onde, desde que fosse para bem longe daquela matilha de cães sarnentos. Habituou-se à dor, a ficar sem lutar, a ser violada repetidas vezes, a ser admoestada. Isso ficou-lhe como outra missão. Que Deus haveria preocupado com ela, que permitia que os seus inimigos a humilhassem e torturassem consecutivamente. No seu corpo, a platina espalhava-se como se fosse ela e ela a platina. Na queda que deu do trapézio, na bacia levara uma barra fina mas comprida. Nas pernas, ambas com platina, na rótula e no fémur. Tinha platina do pescoço ao maxilar inferior, e nos ombros, mais um pedaço. Toda ela era platina. E as dores, quando vinham, as do corpo, também se misturavam nela como sangue, a que se habituara. Era o complemento das missivas. O marido casara com ela, era ainda uma adolescente e ele já velho. Dera cabo dela, arruinara todo o seu percurso. A Marta ainda se lembrava dos seus sonhos, nada de grandezas, só beleza e doçura. E a vida trocara-lhe o rumo. No seu rosto, a beleza ainda era uma marca. Os traços duros, a postura rígida e severa que assumia devia-se à agressividade e maus-tratos, mas ao lado daquela pessoa, que a tratava bem, dizia que havia de adotar mais crianças, muitas ainda, para salvá-las das garras dos abusadores. Com um pé-de-cabra, depois de mais uma tareia apanhada, reduzira a esperança de vida do marido a um sopro de coma. Enfiara-lhe o pé-de-cabra pelas costas abaixo e não satisfeita, ainda lhe tinha tornado a possibilidade de respirar uma hipótese abaixo de zero. Afinal, não havia mal que sempre durasse. E estar ali, agora a ganhar a vida longe dos holofotes, a planear um futuro - quem diria que ela tinha direito a futuro, se a tivesse visto nos malabarismos daquele circo do inferno, grávida do oitavo filho e a alimentar leões, sem nem poder por a vista nos seus filhos naturais, a servir este e aquele, de uma servidão sem voluntariedade nenhuma, a não ser a aceitação da vida como uma missão? 

Despedi-me dela, ainda incrédula, pela sua juventude e beleza, pela sua força de vontade e pelos sonhos que ainda carregava. Marta não era a única a ser usada como bode expiatório de uma sociedade doente, ela sabia-o. Por isso, o seu desejo, quase obsessão, de adotar crianças, de impedir que lhes retirassem os sonhos. E enquanto a Europa se debatia com o tráfico humano, escravizando adultos, esfomeados de dignidade e paz, noutros cantos, se obscurecia um outro tipo de tráfico: o de meninas que eram levadas para países onde pudessem ser usadas como barrigas de aluguer e ter bebés para pessoas ricas e estéreis, que compravam a sua posteridade a preço de lágrimas e de sonhos roubados na primeira infância. 

Havia de voltar à conversa com a Marta. Dar conhecimento da Marta, das muitas martas incógnitas, nasceria a probabilidade de construir uma casa-mãe para proteger mães e filhos dos ladrões de sonhos!

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