História variante humana



Há sempre um teto. Nem que seja o do mundo cerceado de estrelas e auroras boreais. Do limite, quero o sem limites. Haverá sempre um tempo de lamber feridas e de enforcamento de um eu passado, de um eu que deve morrer. Para que um novo eu possa nascer. Devia haver nessa metamorfose, uma bandeira branca para anunciar que o velho se quedou atrás. O velho e o novo eu encontram-se e estranham-se, reconhecem-se, de alguma forma. Nem que seja pelo frio da máscara que se retirou, ou pelo calor da pele que se mudou. Devia haver um fogo de artifício em cada novo eu, marcando a nova era, o novo mundo, as novas expectativas. E há, um fogo deslumbrado que se não vê, que crepita de esperança nas moitas do novo ser, quando é sepultado o antigo e anacrónico eu que serviu o antes.
E é nos depois que se celebra ao exterior. A estagnação ficou congelada na máscara do Carnaval anterior, nas vicissitudes do ser perdido.
Encerramos um capítulo, quando já estamos a rasurar o novo, que a vida não pode esperar pelas cerimónias fúnebres para se acontecer. Perdemos o ontem no amanhã, porque o hoje é o simulacro desse devir a que vamos obedecer. Somos poeira cósmica nos intervalos do futuro. O que ontem doeu, hoje é lembrança que já necessita de reforço para os detalhes. 
O amanhã será coroado como hoje, mas lá, nesse tempo futuro, onde nem sonhos nem acontecimentos de ontem, me mancham os passos. A marcha de ter de ser e a vontade de fazer acontecer. 
Sou hoje e quero o amanhã. Do passado, trago imagens apocalípticas, de desfechos misturados com desilusões e aprendizagens duras, de cordialidades mascaradas de bem a severas punições por ter o coração puro, sempre doce e, perigosamente, nos abismos dos outros. O amor, o verdadeiro é o que cultivamos por nós mesmos, quando nos damos conta que, afinal, que é o mesmo que dizer que no final, nos desapontamos connosco e pressentimos que precisamos de nos renovar. Para mim, a renovação é voltar ao eu original, ao caminho do qual me desviei e racionalizar porquês e porque nãos, já não merece mais purga. Que é o mesmo que dizer, não apetece. Cimentar o novo curso da vida é, mais do que deixar acontecer ou permitir o rompimento das águas, é desbravar florestas, mato, rasgar com violência caminhos virgens, nesse começar de novo. Permitir fontes e flores, pontes e novas cores. 
Se viver em agonia todos os dias cansa, viver em sintonia connosco é como desenhar arco-íris e poder vislumbrá-los, ainda que só. E eu nunca estive só. Valorizar a nossa própria companhia. Gostar de nós, conhecendo-nos intimamente, sabendo que os caminhos passados nos ensinaram desta e daquela forma, não mais do que isso. Voltar a esses caminhos é não respeitar quem somos e o que viemos fazer. Assim, tempos verbais indefinidos são abandonados. 
Começar de novo é saber-nos prontos, ver o pincel cair no esboço para o completar. Erguer o vulto que se quedou no estancamento e alçar asas e voar. 
E vai chover, vai, vai nevar e vai ser duro lutar contra as marés e tempestades. No entanto, é nesse rompimento de ontem com a força do hoje que concluirei ao que vim. E o que vim fazer estará lá, nesse tempo ambicioso que se deseja, acreditando nunca chegar e que se vive, depois, lá, nesse futuro que se rasurou, enquanto um lenço acudia a última lágrima, enquanto as emoções toldavam de cegueira o emergir da madrugada. 
E eu que fui ontem tempo demais, um fantasma preso aos vendavais dos outros, olhei o espelho que me devolvia a imagem triste do que se amontoou. Eu olho e sorrio hoje para essa imagem. Rip. Morri nos ontens e para tudo o que lá vivi. Hoje sou a original, a que veio ser feliz, mesmo repleta de inimigos constantes. Devo agradecer a todos eles. Estou de volta a mim. Não esperem o velho fantasma. Sou ainda de carne e osso e vim para vencer-me. Para celebrar-me. E hoje sou o Ivan Lins ou a Simone. Somos todos essa necessidade constante de nos renovarmos, de restaurar a nossa fé no divino. Oiçam o fogo de artifício no meu coração. Começar de novo é contar comigo.

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