Os lutos precisam de cadáver

 



Eu queria devolver-te o adeus, mas só consigo um até já, mesmo que ele venha, a pedido dos anjos que me amam, com carácter de nunca mais, percebes? Só não mo digas, por favor. Peço-te que nunca uses tal palavra. Só me ocorre a escuridão de mim, para te ultrapassar. Virar uma coisa que não sinta, que se ausente de si mesma, para que não doa. E tu, que tens as tuas dores, só podes entendê-las à razão da tua experiência. Não acredito que percebas, talvez outros como eu, que vivem o que vivo, possam entender. Ou talvez não. Oiço os entendidos falarem de amor próprio. Não me faz falta porque tenho amor por mim, o meu problema não são os sentimentos com que me nutro, mas os que me sobram de ti. Esses, onde vou eu escoá-los? Diz-me onde!

Fui ao rio porque ele me fala de ti. Choramos os dois, ele e eu. Sei que parece tolice dizer-te que o rio sente a tua falta. Mas é que ele sente a tua falta em mim. Deixei o rio, ainda as luzes do dia prometiam sol. Os anos começam sempre pelos segundos, e depois os minutos arrastam-se até às horas e, quando dás conta, mudaste o ano ou ele mudou para ti, mas nada mudou do que sinto e não fui capaz, outra vez, de te esquecer, de te deixar, como tu conseguiste! Como conseguiste tu? Não houve feedback. Houve feedback. Fugiste. Fechaste tantas portas e eu sempre a tentar entrar pelas janelas, a forçar, não entendendo mais nada. O princípio de desamor pode começar por aqui. Tu que foste princípio e te precipitas para seres fim, tu que não encontro outro igual, tu que te diferencias dos outros, tu que podias ser outro, mas não. Tu ficaste como os navios arrastados do Neruda, como a dor do Leminsky, como os jardins da Sofia, tu que não arredas pé do meu espelho, onde tapei a minha imagem com a tua, a deles. Tu estás entre eles, embora estejas mais vivo que eles. Pensando bem, talvez estejas morto, e eu não saiba identificar a falta de vida, ou o teu virar de costas. Tenho pensado muito, que é como quem diz des-pensado, ou o desespero de querer calar o pensamento e não o saber fazer. Ouvi-os dizer que era obsessão. Estarei obcecada por ti? E ocorrem-me sonhos, visões e talvez seja esse o princípio da loucura. Ou do arrebatamento. Ou da queda. 

Dou por mim, tantos anos depois nas dores que deveria ter-me permitido experimentar na altura, quando te foste, não agora! Pra que preciso eu de mais dores que a vida não me tenha trazido de sobra? Mas, admito só pra mim que é bem capaz de ser um luto tardio e eu só mo permitir agora, porque repara, só agora guardei tempo, um tempo obrigado e patrocinado contra mim, para poder chorar a tua perda. Enclausurada, desde 2021. Matei alguém, aparentemente. Mas não foi a mim, e sei-o porque continuas a doer! É. Eu perdi-te há tanto tempo! Porquê chorar-te agora, não me queres dizer? Porque me sobram as lágrimas e os lenços de papel, sobram-me bolsos para guardá-los e paredes para esconder estes caudais. 

Tenho saudades tuas, porra! Tenho tantas saudades de ti. E se me sobram vontades de ir ver-te, de olhar-te, de congelar o tempo olhando-te, como se fosses um manequim de montra e eu não tivesse que pagar com o coração a dor de te olhar sem tocar. Sem toque. Sem conhecimento. Sem autorização. Sem. Sem ti. 

Hoje é o primeiro dia deste ano oito. Fiz imensas coisas hoje, mas parei a meio de todas para fechar os olhos e ser forte. E esquecer-te. E perdoar-me por não ser capaz. No caderno das metas do ano passado, tive que me obrigar a escrever. Eu preciso esquecê-lo. Talvez falando de ti seja uma forma. Esgotando o assunto, o tempo, morrendo de cansaço. Nem as pastilhinhas de dormir me estão autorizadas por tomar conta de uma sénior que tem mais força que eu, que insiste em ouvir o presidente da república a falar à nação, os debates e as altercações entre membros de direita e de esquerda, os tsunamis e as estrelas que morreram. O vulcão na lua de Júpiter. E eu com isso? Nada disso me dói, é o pão de cada dia. Tu é que me dóis, pela frieza e indiferença, pela noção de que foges, pelo agigantamento da dor pela noite, pelo desmoronamento do sonho. Tu és o sonho, ainda és o sonho, seguirás como estrela no meu horizonte. Vejo-me nestas horas apertada, num duelo entre duas partes de mim, as duas te amam e as duas tentam arranjar consensos para parares de me doer. O coração já não tem remédio. Segue te imaginando! Como pode? eis o que pergunta parte do meu cérebro, porque a outra parte não pergunta nada, a outra parte só me diz: ou aceitas ou vais ao endereço, sabes bem qual. Ou aceitas. Foi decisão dele. Foi, eu sei que foi. Eu sei que foste tu que decidiste o rumo da tua vida. Não gosto das tuas escolhas, mas não tenho que gostar. Não sou tua mãe, nem tua irmã, nem tua filha e nem tua nada. Aí está o resultado do duelo, perco sempre. Não se pode ganhar no amor. O amor, cantava a Amy, é um jogo onde se perde sempre. Se não és tu, é o outro. Foste tu que perdeste. Chora a baba e o ranho, assoa-te e faz-te mulher. Bola prá frente. Mas deves saber que para os cegos, os dias têm sempre a mesma cor. Entro devagar na noite, primeiro para ouvir acordes, mas tenho insistido em misturar elencos, filmes com argumentos alternativos, com tempos maiores que os vídeos dos concertos, e vou resistindo até não poder mais. Nunca sei qual será o momento em que os olhos fecham e o corpo desiste da luta diária, mas sei que é algures entre a madrugada e o dia, entre uma verdade noturna e uma ilusão arrastada pra outro dia, ano, planeta. Tu partiste e tudo de ti ficou. Como podes estar completo? Se estás tanto em mim, aqui, mesmo neste momento avulso em que te escrevo, como podes tu estar, ser, permanecer noutro lugar? 

Eu oiço-os falar da minha condição, da minha arrogância pelos limites impostos, oiço-os rirem das minhas dores, mas não é mais do que um lampejo intermitente dos caminhos que faço diariamente a ti. E até me rio com eles, porque vê bem, ela que sou eu, podia estar a pensar e fazer mil coisas, mas ao invés disso, está a sofrer a rejeição e mesmo assim, não a cala. Pelo contrário, delata-a. Como se fosse uma notícia boa para vender noticiários ou jornais ou revistas cor-de-rosa. E ainda rio mais das minhas lágrimas porque são reais, pudessem ser postiças, efeitos de gás pimenta. Não! 

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