A menina azul atravessa o tempo
Os sonhos são sonhos. Pedaços de imagem com sentimentos imersos que não lutam para ver a luz do dia. Sustêm-se por si só. Sonhos dentro do sono e fora do sono são apenas e só pedaços de vidas noutros espaços, pertencentes a outros que nem sabem ser sonhados, nem sabem, nem querem, nem fazem parte da vida de quem os sonha. Sonhos são pedaços de arte, de sonolência de mundos à parte.
Pequenina, mais pequena do que antes, enroscada entre os membros superiores mirrados, disformes, nada conformes ao que nos recordamos dela. Mas no olhar o mesmo, o doce azul num rosto fino de amêndoa, numa moldura de cabelos claros e finos, arremessados na almofada que lhe sustém o olhar, a menina azul sorri e verbaliza algo, não o passado, nem o presente do qual já não faz parte, mas quer remendar, quer suster o olhar para mostrar algo que lhe trespassa o tempo. As vestes escuras, nada próprias, nem condizentes com a leveza que a trazia enquanto cá andava, pequena e leve, de roupagens de menina. A menina azul estava atenta ao órgão externo a ela, naquela sala redonda, no móvel destacado junto à janela, onde cortinados leves, ondulavam junto a ela. A menina ouvia os sons de memória de um teclado que o tio se arriscava compor, acordes soltos de uma composição livre de autor. Entre os membros encolhidos, despido o seu pescoço, havia grunhidos soltos que entravam no teclado e, à semelhança dos cortinados, ondulavam e modulavam a melodia tocada. A menina azul ainda trazia nos olhos os sacos devidamente dobrados, devidamente enrolados, devidamente guardados na gaveta por debaixo do frigorifico, e pedia entre grunhidos, a minha mão, a minha atenção para o que pretendia mostrar, e os meus ouvidos abertos, os sentidos despertos, voltavam ao passado, o liteiro no sofá, a mesa pequena de centro, o brilho eterno da manhã e o pedaço de vento que ondulava os cortinados naquela rua movimentada, entre alferes malheiro e almada, os sons que vinham defronte, do eurico cebolo, do teclado profissional do aprendiz que se compunham peças de cravo, e abafavam os sons do carro do lixo, de todos os carros que se apinhavam e buzinavam num atentado contra o trafego na estrada.
Havia por detrás do sofá, vestígios do que havia sido uma janela interna que dava para outra divisão e ela apontava a rainha isabel num quadro de comemoração, antigo, antigo como o tempo, numa tela amarelecida pelo passar das estações. Ana Isabel, Ana, Isabel, Ana, os membros potenciavam estragos que vinham de outros tempos, de outros planos e que toldaram os planos da mãe que embevecida olhava a sua menina azul, acreditando-a perdida nos anos, na despedida dos anos, do tempo que se não continha. A menina azul ficou ali, naquela sala, os membros mirrados, mas era a estrela que permanecia na passagem dos anos. E entre planos, entrava nos meus sonhos e cantava baixinho músicas que se habituara a ouvir, que se viciara e as paredes guardavam as melodias, guardavam as ondulações dos cortinados, guardavam o movel, o órgão que ela carregava ainda no peito, e nos seus cabelos finos e claros, repousava um travessão de borboleta e uma flor onde esta pousava e compunha o seu rosto de amêndoa na rainha isabel, na menina azul, na ana, no seu avental igual ao da mãe, na sua tábua de passar a ferro de imitação da mãe, dos cremes de cenoura da mãe, do fingimento do tempo que se atreveu a culminar. A menina azul vagueava entre sonhos e planos, entre sons e cardos, entre camélias e limões, entre vasos e sermões que se propiciavam entre humanos. Nos sonhos dos outros, derrubava com clarões, imagens soltas e canções que as paredes guardavam para que ela não partisse, esperasse a sua mãe, entre a saleta e a cozinha, entre as escadas e os corrimões, entre o dia e a noite, entre as enxaquecas e as preocupações, havia sempre uma vaporosa manhã, junto à poltrona e à janela, de onde espreitava a gente e os carros, e olhava a televisão.
Os sonhos continham a glória e o borrão de serem a continuidade ao que se não via e, que as paredes teimosamente guardavam no passar do verão. Um rosto numa tela, um cortinado esvoaçante na janela, uma rosa amarela, um sorriso feito de dentes encavalitados, eles próprios sorridentes, de um tempo que corria por entre eles, de uns olhos azuis líquidos a que os anjos com frequência iluminavam por detrás dela. As asas, os lírios, os amores-perfeitos e a música que se mantinha no continuar, nos jantares de família, na pressa, na correria, na ida ao mercado do bolhão, na escolinha ali perto da igreja de cedofeita, no chegar a casa com a mochilinha e o lanche, e o cão que se misturava nos seus braços, agora mirrados pelo espaço que se deu ao tempo, o de aniquilar a história da menina azul a bailar com os seus passos de bailarina, a menina ana isabel, a menina doce e pequenina que ficou na sala onde a mobília era a presunção de um tempo que se não findaria. Algum dia, haveria de deixar que as paredes depusessem aos pés da mãe a melodia que a mantinha ali, na sua casa, no seu labirinto de afetos, juntando imagens e peças para compor a música de eleição ao seu amor de vidas, à dina, a mãe dina que morrera um pouco nessas paredes, pela falta da menina e de dar ocupação às suas dores, de não ver fisicamente a menina, os seus olhos azuis líquidos e sorridentes que se deixou ficar ali, na poltrona, onde via a tela, na sumida janela, da rainha isabel, da pequena mesa de centro, do órgão que era mais que um ornamento, de onde fugiam os sons, do sofá com o liteiro, das jarras com flores e no meio, o porta revistas do pai, do irmão que se esgueirava noutras músicas, que corria escadas acima, no pranto que se ouvia entre noites primaveris e outras mais febris, onde altercação nenhuma quebrava a música que ela ouvia, que só ela ouvia, que só ela poderia ouvir, naquelas paredes de papel maché ornado de orquídeas amarelas e cor de sangue, em amarelos desmaiados, em vitrais que se adivinhavam nos corrimões, nas clareiras, nos vãos, a menina azul cumpria a sua espera de tempo, nunca sozinha, corria para o meu colo, leve como um pássaro, chilreante e contente com um colibri, doce e constante como uma sinfonia de mahler, e se antes não se via, o tempo mostrava que os membros superiores haviam mirrado pela falta dos abraços, do calor dos abraços da mãe que se entristeceu e que não via que ela não havia partido, o que partira já não existia, que eram as suas pernas magras, os seus braços que aconchegavam o pescoço da mãe dina, da mãe da menina azul. Ela ficara na sala côncava, adornando os sonhos de outros. Os sonhos são imagens que retêm e capturam os sons, os sentidos todos, a saudade e o mistério de deus e os sons presentes nos sonhos salvam-nos do esquecimento, junto com as imagens dos anjos. O rocegar de asas pelos corredores, ouve ainda quem estiver atento, desperto, presente nesse espaço a que chamam passado, porque ele vive em nós através de outros planos. É lá que os encontramos, aos anjos.
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