Quando foi que te esqueceste de mim?

 



No meu bloco de notas, o Keep, tinha lá esta pergunta: quando foi que te esqueceste de mim?

Mais nada. Não consegui acrescentar nem mais uma sílaba. Era uma boa altura para mudar a agulha das quarenta e cinco rotações para noventa. E mandar um recado telepático entre planos: vês, afinal, há sempre uma pergunta que me faço e da qual não me chega a resposta. Mesmo com toda a intuição e sensibilidade que me assistem. 

Acredito que deixei o gira-discos morrer na casa velha, aqui do lado, mas andou comigo anos. Sabes, andam todas as coisas comigo, séculos, sem que possa livrar-me delas, fisicamente. E agora sei que não é afeto e nem apego, é puro desinteresse. É o gira-discos, a bicicleta, os cadernos e sebentas da licenciatura, caixas e caixas de merdices, sim, de merdices, disse bem e nem corrijo, porque me parece perfeito o vocábulo. Entupida de merdices pessoais e intransmissíveis. E que vão direitinhas para o contentor. Queria fazer o mesmo com esta pergunta, mas o meu coração estaria a dissimular em desinteresse a única coisa que me apoquenta e que traz luz aos meus dias. Tu. 

E desta pergunta escrita, não sei há quanto tempo, não posso precisar, já não vinha ao bloco da keep há algum tempo, escrevo tudo de improviso e ela, a pergunta, pode estar aqui há meses. A última nota foi esta pergunta. Dirijo-ta hoje. Assim, fica já limpa a caixa do keep. Há respostas que o tempo nos traz, respostas com muitos anos, até tão antigas quanto os acontecimentos traumáticos que lá moram, nessas décadas de tempo, onde o meu nome continua refém, encostado, segurando um não sei quê, e também não quero saber. E depois, há outras que nos chegam como consequência de algo que nem foi perguntado. Guardo o teu metro. A tua fotografia. O teu afeto. Guardo na memória, precisa e preciosa, os momentos ao teu lado, há muito, sei, contudo, que não têm teias de aranha, pelo grau amiúde com que lá retorno. Sou refém voluntária desses momentos. Já das niquisses e merdices que se vão acumulando em caixas e sacos, atrás das portas da casa velha, nos quartos, na adega, essas coisas são só lixo que me incomoda. Mais nada. Sinto mesmo a tua falta, é saudade absoluta, e talvez pudesse medir-se, se me viesses ver, como dizia a Florbela, à tardinha, a essa hora dos mágicos cansaços e me prendesses toda nos teus braços, talvez se medisse com o teu metro que era saudade absoluta, sem qualquer relatividade. Bruta, magoada, aflita, compreendida e curada, ah, ficaria curada se eu fosse a Florbela e tu viesses ver-me hoje à tardinha. Mas a pergunta não muda, nem encolhe, nem some para um lugar longe da alma, e eu estico os braços, as pernas e torno-me elástica, na ponta dos meus dedos em direção ao céu, não te alcanço, não recebo resposta nenhuma, mas, ainda assim, este amor vence-me, pelo avesso. E cresce pela falta e rompe em soluços alegres, por imaginar que podes vir um dia, um dia qualquer, sem compromisso, podes vir à tardinha e, só de imaginar, o meu rosto assume cores e cora, como uma tangerina, e estremeço, porque te quero, que embaraço, que te quero como se fosse a mesma menina de dezasseis anos a quem colheste uma flor, a quem dedicaste poemas de amor, a quem deste um filho, a quem fizeste refém esta alma minha. Ontem, no final do dia, muito cansada, ainda aguardando que a minha mãe se cansasse dos programas televisivos e quisesse dormir, adormeci. Acordei pouco depois, não importa, acordei e no vídeo que ouvia, alguém falava em Figueira de Castelo Rodrigo e eu voltei a ver-te, a ver-nos aos três, aliás, todos, todos os que estavam connosco. Foquei-me em ti. No almoço. Conversavas e sorrias, dirigindo-me sorrisos que eram só meus de cumplicidade. No restaurante. Depois na Moita, na praça pública, a largada de touros e a minha aflição com o menino, tu gargalhavas. Na Torre Dona Chama, a nossa exploração dos sítios sempre me agradou sobremaneira. E quando me dei conta, ouvi a bengala da minha mãe bater no piso desde a sala, passando pela cozinha, entrando no corredor, aqui, bem ao lado do meu quarto. - Já lavei a dentuça, não vais...? E eu ergui-me, calcei os chanatos e dirigi-me ao wc. -Mãe, já vou dar-lhe a medicação. E fui, logo depois de lavar a dentuça. Ela sorria e contava do que tinha visto nos programas, e às vezes finjo que oiço, mas só sei que não ouvi, depois, quando regresso ao quarto e me tento lembrar, ou quando ela ao almoço me diz: ainda ontem te contei! - Pois, a minha cabeça seletiva só captura informações privilegiadas. Nem big brothers, nem política, nem madeira, nem albuquerques nem salamaleques. Estou-me nas tintas há muitos anos para a televisão, para a informação, para as fake news, para os debates desinteressantes, para os baiões, os melões, os dragões, e todo o tipo de morcões. E escolho o que me pode afetar, escolho a informação que pode passar, com a qual me devo preocupar. E se queres saber, isto é, se quisesses mesmo saber, saberias que não dou atenção a nada que me afaste das memórias que preservo, das nossas histórias em comum que ainda conservo, a ponto de classificá-las com detalhes. E na minha mente, a preocupação maior, aquela com que me debato e não vejo o cerro é a pergunta que inicia o texto: quando foi que te esqueceste de mim? Foi logo a seguir? Foi um mês depois, meio ano, ano e meio, uma década, duas, três? diz-me para que possa dar continuidade à limpeza minuciosa da minha vida sem ti, erguer um plano b, quiçá c, d, e f, g, agá. A minha sanidade precisa de planos. A minha insanidade não. Não requer planos. 

Quando vem o escuro, eu abro a janela, e fumo um cigarro, olhando as estrelas em direção a ti. Haverá algum momento em que olhes o céu e te recordes de mim? Nenhum metro encurta distâncias, nenhum texto pode conter esperanças, nenhum de nós é criança mais, nenhum de nós sonha com a perfeição. No entanto, a minha criança teima em dizer-me que sim, que sonho, que quero, que desejo, que espero, que durmo e que acordo e que não quer que eu desista de te esperar. E eu obedeço, porque não há mensagens, nem emails, nem forma de saber de ti ou de ver essa pergunta que anseio respondida na minha frente, como um estalo, como um abre olhos, como um não oficial. Assim, mantenho a sanidade a sede e fome, e, tempero a insanidade nos alentos do monte de castelo, no cabeço, não me esqueço, não me sei esquecer, e vai continuar a doer, bem sei, sei disso, sei que me desligo do mundo, porque no meu mundo não cabem mais despropósitos, nem impropérios dos outros, nem uma vírgula mal colocada, nem energia gasta em nada. No meu mundo, pequenino, moras tu sozinho, com um céu estrelado, uma nave de sobreaviso, uma mesa, um jardim, e uma limonada fresca, e antes que me esqueça, um gelado de sobremesa. E se me lesses, responderias? E se soubesses que te dedico os dias, tirarias cinco minutos ao teu dia para me vires ver? Ou para me telefonares e me magoares? Tirarias de dentro do bolso mais um poema? Ou reinventarias uma terceira guerra mundial, uma escaramuça, um desaire acidental, ou me convidarias para um lanche ao ramirinho, ao sapo, ao pote, à adega do carvalhinho, ao museu da broa, à adega do moinho, ao cedro ou por destino, a moimenta, que me espera? Se soubesses como me sinto, tremerias de medo, de raiva, manterias segredo ou abririas uma clareira, de modo a poderes vir visitar esta amiga de tantos anos? que farias, se não me tivesses esquecido? A barragem do vilar também está nos meus planos a dez meses ou dez anos, contigo ou sem ti, mesmo sem ti contigo em mim, que nada me leva a esses sítios senão tu, que conheço Portugal inteiro do avesso e foi contigo que o conheci. Que a vida continuou depois de ti, continuou, num continuar de segundos que viraram anos e tudo continuou sem ti, tudo se fez novo e renovo sem ti, tudo, e eu que sempre acreditei, tal como o Pablo, que quando te fosses, morrias em mim, que anjo te guardou e te manteve vivo assim, intercetando as linhas da minha vida, que não se chama vida, que isto não é viver, pra ser mais resumida, isto é sobreviver, esta sobrevida colada a mim que não sabe ocultar o imenso que és e que continuas a crescer, tu na tua vida paralela à minha sobrevida, tu que continuas a ditar as coordenadas do meu afeto, como se não tivessem passado por mim todas estas décadas. Cumpro sentenças de condenada. O crime, desconheço ainda. Talvez nem queira me atrever a esmiuçar esses crimes ou da injustiça da pena. Talvez me resuma para te resumir da minha falta de ti, da falta de ti nos dias, e que um só dia poderia trazer cura ou cancelar o avanço do cansaço que se sobrepõe ao resto, quando me deito no quarto, na cama, quando procuro não enlouquecer, já enlouquecendo de memórias, nas músicas, trauteando e outras acompanhando a melodia com soluços que abafo entre lenços e cobertores, entre volume e paciência. 

Quando foi que te esqueceste de mim, não me queres dizer?

Não precisavas de me dizer o dia, nem a hora, bastava o ano. Em que estação te esqueceste que eu existia? Era verão certamente, porque é sempre no verão que eu morro, arrastando-me depois pelo inverno, no inferno de estar viva! Como gostaria de poder ultrapassar esta saudade, catapultá-la para um novo limiar, o de apaziguamento, o de aceitação. Estes calaboiços são terríveis, porque, se reparares, tenho pernas, tenho forma de me deslocar, tenho braços para conduzir, tenho tempo para chegar até ti, porque até conheço o teu endereço, e talvez saiba em que postura estarias se eu aí fosse, e te olhasse, e talvez adivinhe o olhar que me lançarias, que prisão é esta, que a chave está comigo, que o desejo todos os dias me sufoca, o de ver-te e olhar-te, o de me encostar a ti e cheirar-te, porque não me faltam as formas de o fazer; mas não deve haver pior calaboiço este, de duelo entre as duas partes de mim, ambas te conhecem e te amam, ambas te desejam e te reconhecem, mas diz-me a mente uma coisa e o coração morre, quando a mente fala. E essa pergunta que trago sufocada na garganta, se respondida, desataria os nós, me lançaria em novos planos ou findaria os prantos. Quando foi mesmo que me esqueceste? 

Não, não mo digas ainda. Deixa que o meu corpo envelheça e deixe de estremecer, por ouvir o teu nome e imaginar que um dia me vens ver, um dia à tardinha, na hora dos mágicos cansaços, quando a noite de manso se avizinha e me prendesses toda nos teus braços. Eu sei. A Florbela sabe exatamente como me sinto. Esse sabor que a tua boca tinha, o eco dos teus passos, os teus abraços e a tua mão na minha. Não, não me respondas ainda. 

Comentários

Mensagens populares