E tu guarda-me em ti

 



Como se fosse segredo que ainda me amas, me queres, me sonhas, te enganas, te mentes, racionalizas e me levas ao expoente da loucura, pela aquiescência de aceitares que o poder dos outros te vença, te ganhe, me mate, na tua incoerência de me sonhares. Sonha-me, mas oculta-me como eu faço contigo, guarda-me no refrão da tua próxima canção, na tua música escondida, da tua realidade obtusa, cinzenta, escusa, violenta, leva-me pros sonhos, onde só aí já me encontras, mas não chames por mim quando dormes com a outra. Faz-me um buraco pequeno e violeta onde me possas guardar sem que se deem conta que ainda me sonhas, que ainda me queres, que ainda me amas, e canta-me baixinho, tu que não gostas de te ouvir, canta-me em refrão, nos acordes apoteóticos do passado, da ilusão, da tua falta de comando sobre o coração, pesa-me nas entranhas de todas as tuas paixões, segreda-lhes o amor que me tens que me queres, diz-lhes que as adoras, mas fá-lo olhando nos seus olhos os meus que te amam. Guarda-me em silêncio, rumina-me nas tuas paciências, cala-me nas noites insones, e nunca, nunca, nunca te abandones a esse amor com que lutas. Luta inglória essa, da tua mente contra o coração, da razão da emoção com que me recordas, dos feitiços delas que já não funcionam, das escuridões dos outros, da violência dos outros, dos impropérios dos outros, trabalha, trabalha, escravo, trabalha, esquece-me, cala-me, emudece-me, para mais tarde, sozinho me exalares, como vinho, néctar dos deuses, apropria-te dos engenhos com que se exterminam sonhos e pesadelos, mata-me hoje, mata-me sempre, mata-me outra vez, na mentira da tua boca, no fundo dos teus olhos cheios de amor com que me vês e me olhas na foto antiga que guardas, nas memórias doces que se não despregam de ti, do tanto que me sonhaste nestes anos, no tanto de sonhos que te povoam, onde eu sempre estive e sempre estarei, até seres pó e nada na terra que te guarda inteiro nessa escravidão de me esqueceres hoje para amanhã não. Guarda-me na música do teu coração, oculta-me dos inimigos e das tuas ilusões perenes, faz de mim bode expiatório dos teus fracassos de não saberes, tal como eu, esquecer-me. Esquece-me entre as noites frias e as alvoradas, os amanheceres claros e os amanhãs truncados de um futuro onde me queres extinguir. Anula-me, se puderes, mas guarda-me sempre. Serei tua eternamente, serei tua aqui e noutra vida, serei tua como sempre fui. Guarda-me mulher entre mulheres. E cala-me. Calo-me. 

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