Esqueço-te quando fevereiro tiver trinta dias

 



Aquele casaco servia-me tanto como a evasão dele. Atirei-o longe, ao casaco, mas a negação dele não o sabia fazer. Ou teria feito. Ninguém nasce para masoquista. Isto sou eu a falar comigo, claro está. Nunca teria coragem de o revelar a ninguém. Não desta forma. 

Andei a magicar, ui, e eu a magicar são voltas e voltas ao cérebro. Não porque seja muito inteligente ou porque tenha um cérebro do tamanho do silo-auto. Muitas vezes penso que foi injusto nascer tão desproporcional. Sou um bicho sensual, misterioso e ávido de conhecimento, mas em matéria de dar os passos certos, a lua incomoda-me muito. Se ainda a tivesse em câncer ou em touro, mas nesse capítulo a coisa não me saiu tão premiada. Sim, pai, podia ter nascido com mais qi e menos sex appeal. Ou o contrário, caramba! Ou podia ter a lua noutro sítio, não em gémeos. Faz-me sentir um bichinho peculiar e eu preferia ser um bicho igual aos demais. Porque não? Ainda gostava de saber o que pensa o meu pai sobre alguns dos desabafos que lhe vão sendo dirigidos. Procuro o olhar dele na parede, mas é o do bisavô que me recebe, e sempre da mesma forma carinhosa. 

-Diz-me querida, escreve, debate, caminha nos teus pensamentos!

-Bisa, põe-te no meu lugar: tu sabes que é ele, aquele, só aquele, mais nenhum mais nada, nenhuma pastilha ou supositório, nenhuma vitamina nem nada químico ou lírico para conter o meu sentimento. Anulá-lo. Dissimular? Como, bisa, se acordo e deito-me a pensar nele? Se me repito quinhentas vezes que um homem que não dá valor ao amor que lhe tenho, só pode ser inocente, ignorante, ignóbil, mas não ele, bisa, tu sabes que ele é o oposto de todos os defeitos, a completude de todos os meus anseios! Luta do meu lado, bisa. Conspira a meu favor! Que saudades lhe tenho! E já estaria curada, não fosse tão orgulhosa! Ele ainda me disse: anda cá, senta-te aqui ao meu lado, olha como me pões só de olhar para ti! Mas eu fugi! E depois, fugi outra vez! Porque fujo eu de ser feliz??? Não me podes dizer?


O bisa diz-me: filha, dizer-te o quê? sabes tão bem como eu a resposta! Tu foges porque tens medo que não seja real, que ele não sinta o mesmo que tu, que ele possa morrer depois de o abraçares! E tu mereces tanto abraçá-lo! Se estivesse no meu poder, estavas com ele, acredita-me! tens menos amigos que a maioria das pessoas que já conheceste nestes cinquenta anos! Agora, deixa-me dizer-te o que tens mais: Alguns inimigos! No seio da tua própria família! E não falo da maioria. Falo de meia dúzia! E fora da família! Alguns deles são só uns farsolas oportunistas, sabes bem, rapariga, invejosos! Nunca disse isto a ninguém. Só te podia dizer a ti: és tão parecida comigo que às vezes enquanto estou aqui no grupo da torcida por ti, no meu ócio, cismo como é possível ela ser minha bisneta, se é mais parecida comigo que os meus próprios filhos! E és Cristina! Sabes ler pessoas como ninguém! Olha lá, tu achas que ele não pensa em ti quando se deita? Mesmo quando está com a outra nos braços? E quando acorda, achas que ele pensa em quem? Eu não queria precisar to dizer, mas ele sabe quem és tu pra ele! 

-Bisa, já não o vejo, não o cheiro, não o toco há mais de dois anos! Quer dizer, já não faço amor com ele, assim, pele na pele, boca na boca há mais de vinte e cinco anos! Sou péssima a matemática, mas se eu tinha vinte e nove a última vez que isso aconteceu, daqui a quatro anos faz TRINTA ANOS! Bisa, trinta anos é uma vida! Porque não morri eu quando ele partiu?

-Mas morreste! e tens morrido tanto! E morrer é o que fazes constantemente, quando estás imersa na dor, quando adormeces a chorar! quando molhas a fotografia dele, quando beijas as nossas! Se há alguém que tem morrido muito, acredita, és tu! Tu vales por quinhentos dessa espécie! O que te digo é confidencial, mas olha que é bem verdade! Eu sabia que o Chico era uma boa semente! Tu ainda és melhor! Mas não te distraias! Escreve a tua revolta, o teu amor, desfia-o como se fossem contos do teu rosário!

-Mas são bisavô, nunca vi nenhum rosário com tantas lágrimas gordas, com tantas contas de mágoas, com tanto amor desperdiçado!

-Olha que aí estás enganada e sabes bem disso! Nada no amor é desperdiçado! Não é como quando vais à peixaria e pedes para arranjar os peixes para comer ou as hortaliças para a sopa, que deitas desperdícios fora. No amor, nada é desperdício e eu sei que tu sabes isso! Nenhum amor é deitado fora. Nem reciclado. E não é como as asas dos anjos, que cortas para melhor poderes caminhar, nada disso! Quanto mais lhes cortas as asas, mais elas crescem, assim é o amor! Tu viste, tu sabes! E não tiveste adultos a ensinar-to! Tu sabes, minha querida! Agora vou te deixar, hoje não te quero ver lágrimas! Hoje tenho um compromisso inadiável, mas voltaremos a conversar!

É nisto que dá, conversar com os idos! Até eles têm compromissos inadiáveis! E eu que queria tanto ter um compromisso inadiável contigo e nada! Nada! Nada vezes nada, dá zero, dizia-me o avô Rodrigo! Queres ver que contigo vai dar outro valor?! E nem adianta vir com chás das cinco ou sermões das sete, vai dar ao mesmo! Sou uma gaja do Porto que ama um gajo de Trás-os-Montes que não quer saber dela pra nada! Zero! E esta gaja não sabe aceitar um não! Mas este não que eu não aceito (que remédio) é um não marado! Nem sequer é um não concreto! Não é um não que vem na sequência de uma pergunta, nada! Se houve quem fizesse perguntas, não fui eu, foi ele! E eu respondi vagamente, não é chuva, nem gente e a burra não responde assim. E eu a dar-lhe! E engavetei a porra do desamor no quinto andar, desamor comigo, pois claro, porque achava que me amava primeiro a mim, mas já vi que até no amor sou perdulária, porque o amo acima de tudo! É preciso ser muito estúpida para amar acima de si mesma! A tia Carmen tinha razão. Estúpida! Ainda por cima parva, nem pareces do Porto! Eu aceito tudo, podem dizer-me tudo! Não há mais nada que me digam que me possa irritar, descentrar, nem que sejam os meus inimigos (sejam eles declarados ou ocultos) a dizer-mo, vai dar ao mesmo, estou-me nas tintas! Eu própria me insulto, nenhum dos insultos que os outros possam me dar será maior ou mais importante que os meus! Ah! Esse é o vosso kharma! O meu está a ser passar estes segundos, dias, horas, semanas, meses, anos pendurada, em posição de otária, que é uma carta de oráculo a que eu chamo de carta estagiária, dependendo da carta anterior ou da carta posterior. Se for um três de espadas e o enforcado é o grande otário, e isso até muda de figura com a carta posterior, do tipo três de ouros ou seis de espadas. Se for um seis de espadas seguida de enforcado, ó pá, é o voluntarismo a querer impor-se na mente sedenta de saber mais. Ou a outra perspetiva. Sempre gostei de perspetivas. Um dia sonhei que era rica em perspetivas e isso deixou-me feliz. Porque recorro sempre a esse cofrinho, escondido no quinto piso e venho de lá mais reconfortada. 

Com o mundo todo, a mudança de perspetiva resulta, mas contigo, népia! Não há volta a dar, percebes? Eu penduro-me e o que acontece é mesmo isso, fico dependurada. Pelos penantes! Quanto mais te quero esquecer, mais me vens à lembradura e olha que eu sou teimosa que chegue. Eu aceito o que não compreendo, mas contigo preciso compreender!

E desvelo as conversas, os olhares, volto atrás com o teclado nas mãos, as notas sol, dó, ré, mi aos saltos, a reinventar-se em acordes forex, a porra do teclado é pesado pra chuchu, agora pensa num chuchu, não tem nada a ver, é pior ainda! Doze escalas no ex50 e cada uma mais pesada que a outra, eu na dória e tu na frígia e eu a ir pra lídia e tu a vires para uma escala menor, que não é nada o teu género, mas elas, as porras das escalas, coitadas, a servirem-me de desculpa pra te ir ver, quer dizer a tecla do sol, claro, é sempre o sol, sempre o sol a calar-se, mas as outras desafinadas, todas em coro a gemer-me numa só mão, dentro do saco! Hás-de pensar que é fácil, pegar numa desculpa pesada como um teclado e levá-lo só pra te ver! Aliás, só pra te ver, eu arrancava tecla por tecla, desmontava tudo, para te ver arranjar, para ver as tuas mãos na solda, nos circuitos, a deslizar nas teclas, e as minhas, a segurá-las pra não te afagar o rosto, o braço, pra não te beijar, para não te desenhar um striptease ali, imediatamente a seguir a ver o sol cair nas tuas mãos, o que uma gaja do Porto tem que fazer para se conter, tamanha a vontade de te agarrar e não resistir mais! Sempre fui contra a minha resistência e antes que ela venha, a coragem, eu fujo, uma leoa a fugir de um leão! Uma cena completamente fora do meu manual, até me fazes lembrar que eu devo ser o cromo mais difícil da caderneta dos avatares que já conheceste! Pudera! É muito controle! E volto onde estive, inúmeras vezes, meu amor, volto e vivo nessa volta que o tempo deu, ali fiquei pendurada como um duque e uma cena triste! Por ti, eu ia ao fim do mundo, só por ti! E tu nunca foste qualquer um. Embora eu ache que ninguém, nenhuma pessoa é qualquer uma, para mim perto de ti, todos perdem qualquer valor, como pessoas, não os vejo, não os reconheço, nem virtudes e nem defeitos. Um completo desinteresse toma conta de mim e só vou ao alerta vermelho se penso que podes ler tudo o que escrevo! Tinha piada! E de certa forma, era o que eu gostaria mesmo! De saber que lês! Porque é por ti e para ti que escrevo o que escrevo, quando escrevo. E quando escrevo, sou só eu deste lado, mas és só tu desse! E o mundo agiganta-se outra vez. E vou dar-te mais uma informação. Tu és o meu centauro Quíron. Se algum dia me dissesses: Tu és o meu Quíron, conforme to digo eu, eu não parava no chão, subia ao ar, inflava, pairava, voava, planava. E como diz o Tomás: depois acordas e bates com a mão na mesinha de cabeceira! E por falar em mesinhas de cabeceira, em sonhos, ainda me lembro das nossas mesinhas de cabeceira, ainda me lembro da música para adormecer e para acordar, ainda me lembro dos espetáculos, ainda me lembro dos verões, das primaveras, dos invernos e dos outonos e das outras tantas estações que floriam entre os teus olhos e os meus, e por falar nisso, ainda me lembro dos sorrisos rasgados, da tua boa disposição, da tua inteligência viva, da tua generosidade! Da tua entrega, do teu amor, de todo tu, nú, vestido, molhado, seco, inteiro, sempre inteiro e sempre mais! Sempre maior que os astros reunidos, sempre alegre e bem-disposto, sempre criativo e saudável, sempre, sempre, meu amor! E se tudo o que lembro de ti é tão florido, perfumado e inebriante, vês bem que eu não posso aceitar um não que não foi dito, a um amor que nunca morreu, que nunca se desmontou, nunca se desmanchou, nem desfez, nem evaporou, nem deixou de acontecer. Porque todos os dias continuo a amar-te, todos os dias a pensar-te e a sentir-te, sem dedos, sem toques, sem mensagens, nem chamadas, nem um simples: olá, estou vivo, ou olá, desaparece! Continuo a povoar o meu universo das lembranças que tenho tuas, que guardo, que são o meu oiro. Todo o meu oiro! E é dessa riqueza que sou feita e tu das pedras de basalto e das fontes abundantes e eu de estrelas e tu de sóis flamejantes e eu de penas e tu de luz. 

E não adianta virem cá de chanquinhas, mandarem-me bugiar, rezarem bruxarias, algaraviadas e sangrias, eu sou difícil de convencer, nem os meus idos tentam, conhecem-me de ginjeira. Sou tripeira de gema e amante do belo e eterno. E vim ao mundo para te amar. Vim mesmo! E ainda um dia to vou repetir, num frente a frente, num tête-a-tête. Dá-me tempo para tecer coragem e quando menos esperares, pimba, vou estar na tua porta, e se não abrires, abro eu, faço-te uma serenata ali mesmo, pública, na rua formosa, ao lado de onde o avô Rodrigo trabalhou, ali mesmo ao lado onde tivemos um atelier, ali ao lado onde passamos dias e noites a trabalhar e a conversar sobre tudo e nada. Ali, aí, aí onde estás que é o mesmo que dizer que é onde está o meu sol, a nota sol do meu teclado!

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