Morrer um bocadinho

 



Ando há anos para abandonar a dor parida, e sinto que tudo ainda me dói, tudo e nada, os lutos e as batalhas, completamente. Como se o monstro criado para me segurar, me amarrasse os braços, me vendasse os olhos, me deixasse em estilhaços, assim me sinto. Olho o meu corpo, o ventre flácido, os olhos desmaiados e baços, sim, não sou dona de mim quando intento este exercício. Pergunto-me onde estou, num corpo estranho, não me reconheço, estou a metade de mim, no avesso, do outro lado, e esta que as aparências dizem ser eu, desconheço.

Paizinho, acompanhas-me sempre nos monólogos, estás em mim e tantas vezes és eu, que me dou por vencida e sinto-me ser erguida pelo teu amor fiel, constante e chamas-me guerreira e queres-me inteira, mas pai, onde estou eu? Esta não sou eu! Sou uma faísca perto da fogueira que cá deixaste, menos que isso, sou o pedaço de terra e tronco que qualquer cão vadio despeja voluntariamente as suas águas, onde está a tua filha? Prometeste-me tanta força, que é dela, pai? Tantos pores do sol na natureza, no desprendimento, porque continuo a espreitá-los dentro da cadeia, da aldeia, da prisão desta terra?

Pai, é assim o esboço do fim. Nega, se puderes. Nega, diz-me que não, pai, diz-me que a última imagem de mim será livre, a voar, pai, onde estão os meus irmãos, pai? Pai, torna-me leve a jornada, estou tão cansada, paizinho, estou, deveras, derrotada.  Oiço-os sussurrar sobre mim, da minha vida, que é dela? Onde está a minha vida, pai, tudo se resume a esta janela?

Eu injeto neste corpo frio, o estranho fogo, o da paixão pela vida e criação, por ele, por esse ele que me faz ainda viver, sonhar, só ele me pode erguer e levar ao céu, pai, porque estou dentro deste cubículo apertado, este corpo mal-amanhado e quero tanto partir, pai, partir, e sonho com o desenrolar das nuvens, com os arco-íris e as borboletas, leva-me pai, só este final de tarde, pai, faz-me ver os montes e as serras, pai, o bosque apinhado de caruma e sanchas, pai, por favor, leva-me outra vez, ouvir a música, as avé marias angelicais, no cimo do cabeço.

Pai, liberta-me, ainda que só um dia, uma hora, alguns minutos. O véu rasga. O pesadelo acaba, o corpo se liberta e eu na tua asa, regresso, temporariamente, a casa. E quando o céu amanhece, sou somente a lembrança de um nome inconveniente. Assim seja.

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