O dia guardado para ser-se humano

 






Existe? Se não existe, terá que ser inventado. 

Pensem comigo. Tantos dias em que reverenciamos os istos e os aquilos, os estes e os aqueles, o silêncio, o diálogo, os animais, as árvores, a justiça, a república, as guerras e a paz, os tumultos e as primaveras de Praga, os armistícios e as praças de Tyananmen, toda a catrefada de coisas. E sempre houve criatividade, até pra se inventar o dia do fim de tudo. E o fim de tudo faz-se todos os dias. Estamos calendarizados, gostamos da hipocrisia solene que vem quando dizemos, amigos, hoje é o dia da poesia, das comunidades, da mulher e da mãe. Tantos dias de hipocrisia. 

Para quando o dia da honestidade? E da exterminação da hipocrisia? E do altruísmo? E da empatia? E do fim da inveja, da cobiça, da traição? E o dia do fim da fome? O dia da saúde global e o dia do fim da corrupção? O dia de sermos gente? Não há. Porque quem é gente, é-o todos os dias e sempre. E quem não sabe ser, continuará a galgar as promiscuidades todas que são fabricadas por modelagem e alimentadas pelo todo social. Ámen. 

Ontem foi o Dia da Mãe. E quando se é mãe, é-se sempre. Todos os dias. É-se boa ou má mãe, viva todas as mães e até se diz que é o dia da imaculada conceição. Que aos hipócritas das religiões se promove a continuidade da mesmice. Até há bem pouco tempo, interromper uma gravidez era a dicotomia: matar uma criança que ainda não era. Ou fora da religião, a pílula do dia seguinte. Se houvesse coerência, não precisaríamos de dias para promover coisa nenhuma. Se fossemos, efetivamente, humanos, no sentido de viver dentro de princípios que não corrompem a si mesmos e/ou aos outros. Mas isso não dá jeito nenhum numa sociedade que ganha com todas as desumanidades. E está na hora de rasgar essa porra toda. Mas como é que as empresas e os grupos económicos megalómanos vão lucrar, se não venderem todo o tipo de inutilidades para se presentear uma mãe que é mãe todos os dias, que precisava de descanso, mas tem o cansaço de cozinhar e arrastar-se para satisfazer todas as expectativas da sociedade?

Tristes sociedades, sem deriva ou a mesma comprometida na deriva dos porcos, feios e maus. 

Nunca liguei a essa porra do dia mãe, nem do pai, nem dos avós, nem dos filhos, nem do raio que me parta, especialmente a mim. Os aniversários são uma data comemorativa de vida, mas se ela for mal empregue, mais nos valia nem os comemorar. Há dias, o meu irmão veio passar dois dias com a mãe dele e não demorou para me presentear com o livro do Pedro Strecht, o pedo-psiquiatra que eu aprecio, com um livro cujo título é Pais suficientemente bons - para filhos que não têm de ser perfeitos. Não sou mãe dele. Embora isso seja questionável, mas claro, já trazia implícita a promoção estendida para o Dia da Mãe. Que bonito. O meu irmão não serve, propriamente, de exemplo, para a comemoração de datas. Para o meu irmão, todos os dias são dias de presentear toda a gente, assim haja dinheiro. O meu filho mais velho, o Francisco, veio visitar-me para vir buscar dois cachorros que seguiram para adoção. Trouxe-me um ramo de rosas vermelhas, belíssimo. Nem lhe agradeci, pedi-lhe que desse à avó. Assim fez. Esse gesto não é dele. Veio do externo. Nunca eduquei os meus filhos nos dias especiais, nem no consumo, nem na superficialidade. Nunca ligaram a isso, porquê? Porque quem os educou, não contribuiu para que se mantenham tais comemorações hipócritas. A minha mãe também nunca patrocinou nada disso. Aliás, nunca se identificou com religião absolutamente nenhuma, e, por conseguinte, nem eu e nem os meus filhos somos religiosos. O consumo é que ganha com os vossos dias. As vossas homenagens hipócritas. O dia de sermos humanos tarda. E falha todos os dias. Porque este é um mundo cão, onde se dizem amigos e se escondem e se calam, e engolem o veneno que têm preparado para os amigos e para os sucessos e insucessos deles. Quando ocorre uma tragédia com um deles, vocês não demorarão para vir dar-lhe um abraço virtual e dizer: lamento, vai passar, força, aguenta-te à bronca. A vossa virtualidade afetiva enoja-me sobremaneira. Porque eu sei quando é autêntica e quando não é. Vejo muitos flops humanos, mas humanos, infelizmente não. Sois uma tropa de clonados pelo facilitismo e falta de autenticidade. E generalizo porque vos observo. E observo o ruído do vosso silêncio e o silêncio dos vossos afetos. A vossa insatisfação grita o mediatismo num é tão bom, não foi, sois uns nins, sem atitude e cheios de máscaras! Quando crescereis como humanos, estaremos a dar um passo certo na civilização. Mas nem se preocupem. Porque a vossa falta de posicionamento vos será cobrado. Assim, trau, de um dia pro outro, num movimento plutónico que vos fará repensar tudo outra vez. Acordai! 

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