Steal My Kisses ou a arte do copianço
Recorria-me do meu auxiliar de memória para ver o teu sorriso desenhado junto ao teu irmão, qual cabritos, pendurados no granito mais alto, dos paus arcos e espadas, dos pinheiros guardiões para as vossas lutas fictícias, da linha do horizonte, o cenário para os sonhos que viriam depois, um cavalo, um carro, uma moto, um casarão, uma namorada bonita, uma sessão de cinema, uma aparelhagem de música. Os sonhos de crianças são puros e paliativos para as dores que vêm depois. E vêm sempre, noblesse oblige, a vida é assim, dá com uma mão e ensina com as duas. Quando somos crianças, os únicos pedagogos que toleramos são os pais e a professora que é a única que tem carro e vem de longe, doutra terra, como se outra terra fosse o estrangeiro. Gostamos de estrangeirar os que nos parecem sumamente inteligentes e se destacam do rebanho a que nos habituamos e consideramos ser pertencentes. E há muitos senãos no processo de crescer, todos deferentes e todos iguais em cada um de nós, independente do universo que nos gerou, da mão que embalou o nosso berço, dos motins internos e externos que o mundo cria para o nosso aprimoramento.
Lembro-me (eu já era interna de ti, porque te li, desde que te encontrei) que a negação mais feroz e, quiçá, a mágoa mais perturbante que roubava paz à tua fisionomia e mente eram as bagadas da tua mãe. Não porque ela as ostentasse, ao contrário, mas porque nem sempre conseguia esconder dos rostos vários, nos inúmeros momentos. Um choro aflito, o do amor e do abandono. Nunca nos deixa imperturbáveis a dor do outro, e, sobretudo, se o outro é a mão que nos veste, que nos abraça, que nos dá o pão à boca, os mimos de crescimento. E tu, esguio, jimbras, já sabias que a vida além-horizonte não era só de sonhos, só de risos, só de arco-íris porque as paredes da tua casa mostravam o que muitas encobriam, a dor do desamor. Olhavas-te no espelho da alma, enquanto afagavas quem te brotou, que nunca havias de ser como ele. Esse ele a quem amavas e, secretamente, odiavas pelas lágrimas que provocava na tua mãe. Nunca, juro que nunca serei igual a ele. O progenitor. Nunca seremos iguais a eles, aos que nos criam, aos que nos defendem e acarinham vida fora. Enquanto a vida dura.
E nesse remake, somos todos iguais e todos diferentes.
Ele, habituado às agruras da vida, ao trabalho sem descanso, atravessando vilas, cidades, galgadas a pé, e à ausência de manuais para lidar com as dificuldades de sustentar vários filhos, driblava a coisa entre o tasco da terra que o via envelhecer e os tascos que a vida lhe ofertava, nas longas e difíceis caminhadas de ter que governar a vida, a sua e dos seus. Havia dor nos seus olhos, teimosia, e tanta ternura e compreensão. Mas nem o álcool conseguia apagar os seus arrependimentos. Nada, nada, ou quase nada. Lembrava-se deles sempre, embora os sentisse diminuir agora, no avançar da idade, deparando-se com a emancipação dos filhos, no sorriso dos netos, conseguia rever nessas caritas jovens e atrevidas o que sonhara poder comparticipar aos filhos. Os netos são sempre sonhos, cristais perfeitos, que habitam um homem sem que disso se deem conta.
O espelho interno devolve-nos a imagem do fracasso, da nossa vulnerabilidade, dos momentos frágeis que desconcertam vidas e, se soubéramos, todos, que são iguais, ao vermos um, veríamos todos, então, talvez aprendêssemos mais cedo a perdoar-nos pelas desalegrias, pelos erros e plágios geracionais. Ele não podia perdoar o progenitor e por isso, sem nem saber, rogava pragas a si próprio, recusando a amar e a interpretar as dores alheias que tomaria para si, tão logo a vida lhe oferecesse encruzilhadas. Lembrava-se de ser protetor com a sua amada progenitora, e, sem nem saber, procurara alguém como ela, para o acompanhar vida fora. Não era difícil de encontrar, mas nunca seria na primeira tentativa, sequer na segunda ou terceira. A vida tinha preâmbulos e caixinhas de Pandora que nem sempre estamos atentos, a fim de evitar.
Perdemos as pessoas, mas não os afetos, perdemos manias, mas não os tiques ignição, ganhamos teimosia e uma forma obtusa, em forma de concha, explicaria Freud, para que melhor entendêssemos, a forma de nos protegermos do mundo, das dores que carregamos por décadas, que guardamos e, que afluem ou vêm à tona, quando uma pessoa está distraída. Não serei como a minha mãe, nunca me dedicarei a carreira nenhuma, pois se foi a carreira dela que nos roubou a sua presença, nunca beberei álcool, nunca terei amantes, nunca serei frágil e imaturo, nunca. Esta palavra forte e determinante, na verdade, é ela feita de pragas e de promessas que se cumprem pela negativa. Se eu não sair de perto dos meus filhos, eles nunca se sentirão abandonados, porém, podem sentir-se alheados da minha falta de realização. E depois, cristina, e depois, que dirás a cada um deles, se não fores feliz?
É aí, só aí, quando o entendimento vem, muitas rotundas depois, muitos espelhos depois que nos damos conta que repetimos padrões associados ao nunca, aos nuncas que esbaforimos contra os nossos progenitores. E quando olhamos o passado, num misto de nostalgia e saudade, nos ofertamos o perdão, primeiro a nós e depois a eles, e então José, o que mudou dentro de ti, foi só uma virgula ocasional ou sentiste necessidade de mudar todo um parágrafo, todo um texto, toda uma forma de ver o mundo?
Eu evitei o álcool, mas continuei a ser teimoso, a preferir a ilusão do amor ao amor em si. Eu deixei de ser inteiramente mãe e amiga para tentar ser também a mulher e a pessoa que vim ser. A teimosia é a particularidade sempre associada às nossas fugas para a frente. Não, não vou repetir aquele padrão. Jamais, mas este jamais, em francês, traz um tempero de perdão que necessitamos, uma pitada de compreensão e ternura que, afinal, ninguém traz a porra do manual de instruções.
E quando decidimos pegar com amor nos nuncas e nos jamais que antes edificamos é quando começamos a ser nós, sem o espelho como bode expiatório.
Só nessa altura, verdadeiramente nos perdoamos, largamos a teimosia e começamos a olhar o mundo com os olhos de quem veio cumprir o seu destino e não o plágio dos seus progenitores. Eu vim limpar as sombras dos meus antepassados que, porventura, por circunstâncias, por limitações, não foram capazes de ser felizes. Pois bem, eu decidi sê-lo e aprendemos o valor da eternidade enquanto perduramos no sorriso dos nossos filhos na forma mais autêntica do nós. Ser feliz, afinal, é uma aprendizagem e amar é a recompensa, o pote no fim do arco-íris. A paz acompanha os finais de tarde e o sono devolve-nos a esperança de que acreditávamos desenraizada. Acreditem, até a esperança pega de estaca, quando somos jardineiros pacientes. E um dia, hei-de roubar-te mais um beijo para quando a morte chegar, eu sentir que é tempo, já é tempo de partir, porque me cumpri.
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