Alma Novaes








Já não há poesia dentro de nós,

fugiu, escapuliu-se

enquanto o gato se lambia,

enquanto o vento passava,

nem um só transeunte sentiu

na altura, a sua ausência;

ela sumiu-se no jardim,

estatelou-se no chão

como um fruto maduro,

como no jogo sujo do empurra,

do privilégio e da exclusão,

o excedente à espera 

da boca, do dente

e o esfomeado, 

tal como o doente,

nem come, nem faz luto,

jejua,

carregando jugo,

na rotina das contas

dos impostos e das rendas,

sendo a merda da ementa,

do menu da servidão que

nunca será suficiente,

enquanto esbanjais em delírio

face aos vossos iguais,

sociedade demente,

indiferente aos marginalizados,

sois marginais,

porque a poesia adoece assim, 

na usurpação de poderes,

na ostentação da gula,

no virar o rosto da hipocrisia,

nações encantadas

com a falsa profecia

do ego e da megalomania,

do ferrari e do iphone,

da vulgarização do nome

a que dais à vossa imprensa,

somos jograis da paciência

empurrada aos limites, 

somos os vossos acepipes

no frenético oásis de oiro

que não honrais,

e quereis que a poesia 

adorne e pratique conivência 

com a ausência de virtudes

com a injustiça militante,

não, que a poesia não vai nisso, 

ela vai mais adiante,

a poesia rivaliza 

com a falta de compromisso

dos dirigentes do mundo, 

a falta de sizo

dos déspotas que se multiplicam

como clones e parasitas

cheios de engenho

e destreza

em parir desigualdade,

Que a poesia se faz esteio

nos anais da história. 

A senhora poesia 

podia emprestar-vos memória.

Mas pra esse evento, 

não há fundos de maneio.


Já não há poesia em nós

e as hortas e os pomares

 foram engolidos

pelo calor do estio, 

congestionamento climático,

jazidas e corais destruídos

e o diabo a quatro, 

e não nos abanem 

com as hortas comunitárias

a vossa fome é excedentária

deste presente indigesto,

o lombo do gato retorcido,

o cavalo, a vaca e o boi,

o escaravelho e o gafanhoto 

do cão que vos lambe os beiços,

tudo comeis, tudo bebeis

pela retorta, 

e não deixais nada,

que ireis rapar até aos ossos,

não vos chegará 

pro tanto que consumis, 

que sois um logro 

a que não vemos o fundo,

desapareceram todos os abris,

simulações, aeroportos,

esgotos e submarinos

as eleições, os planos

de atribuição de poder local,

a destruição da saúde,

sois a diarreia da promessa

e ides fingindo sensibilidade

colocando uma compressa,

e o fosso do mundo

não nos fala de sentimentos 

mas de emoções,

de revolta, de ira e de injustiça

 nem o ciclone ou o vulcão

quando chega nos acrescenta, 

são só dores e ais, 

e valas coletivas

e a vossa preocupação 

substitui-se com a hipocrisia

a vossa criatividade

arranjou bode expiatórios

a quem dais nomes próprios

eis a vossa virtude, 

banalizais a terra, 

conspurcais o hábito,

desumanos demais!

e essa devassidão

 debruça-se sobre nós 

como um hino decadente 

ou um jingle publicitário

do que de mais ordinário 

nasceu da precariedade

e como dizia o poeta, 

onde é que há gente no mundo, 

gente de verdade 

que não violente os sentidos

que não fira a nossa alma,

que sirva de inspiração

para o concerto do planeta

mas a vossa obsessão e cegueira

mantem a corrupção

que não limpa os nossos rios,

que os peixes de papo pró ar,

intoxicados 

falam da pluralidade

dos vossos interesses,

pelos compostos químicos,

vá, humanos do interstício,

façam mais quermesses 

e bailes de gratidão

e não se surpreendam com o terrorismo

 enfiem o dinheiro no rabo

quando a granada vos explodir 

no fingido altruísmo


A poesia demite-se quando 

quem pode ajudar, cala,

as injustiças permanentes 

e essa permissividade 

a do vosso silêncio,

é o estrume 

em que escondeis a verdade!

Somos entulho que fede

a céu aberto, só fede, 

e a miséria

não escreve poesia,

só nos fode e não prescreve!

não há poesia dentro de nós

apenas injustiça e insanidade

e falta de autenticidade

e provincianismo insalubre

e a glória que procurais nas guerras

será proscrita por um esteta maduro

definireis novas metas 

de mortandade,

maldita forma de propagar poesia

e ela não pode por nós 

reconstruir a humanidade 

e continuais a alimentar 

de armas e de dinheiro 

até aos dentes as marionetas

inconscientes 

e não tardará, vereis, 

já não tarda mesmo nada,

os sedentos do vosso ofício,

do vício que alimentastes,

espumarem-se de malícia

e de loucura hedionda, 

dos hospícios poderes,

bombas de sangue e fome

a explodir-vos na cara,

vós cúmplices, 

não há inocentes 

da vossa ambição,

uma metralhadora em cada mão

para exterminar, 

são só números,

são só nomes, 

são só carne para canhão,

e os vivos, 

esses continuarão marchando,

jograis indigentes,

completamente manietados

ao som dos vossos ideais,

papas, bispos, cardeais,

mestres, gurus, pastores e samurais,

a era militar que programastes

e que não já podeis escapar;

Ergamo-nos, humanos de segunda

na fecunda gaiola doirada,

temos a prisão garantida, 

sob a aparência de segurança, 

guerras sem fim, 

até aos confins do globo,

que se cruzam e fertilizam

no arrastar da década

na propaganda de bolso,

vós quereis nos dizimar

por sermos um estorvo

por exigirmos retorno

na questão da igualdade


E aos que não aceitarem o 

transtorno da irrealidade,

a escravidão voluntária,

serviremos de adorno 

num lar de beneficência, que

de acordo com a prosperidade,

num ser tão desumano quanto possas

 ainda vamos a tempo

pra vaga limpinha, 

na concordância de doador

numa qualquer feira 

de tráfico de órgãos

na esquina do guetto mais próximo

é fazer o favor de alinhar!

A poesia insinua, 

mas não pode escolher

se vamos nos vender

Ou defender ideais!

A poesia ofende-se na peçonha,

na falta de virtudes 

na falta de vergonha,

A poesia não se mistura 

às mentiras eventuais

com que vos defendeis 

todos os dias

falando de todos,

como se todos 

fossemos o espelho

da vossa latrina,

e quereis uma rima, 

uma pausa poética, 

uma paixão de gasolina

na nossa dialética,

em corações castrados,

onde foi podada a esperança,

onde foi dizimada a vida 

precocemente fodida a criança, 

e a agonia do homem que 

que é como quem diz, 

mutante, farsante, debutante

noutros tantos carnavais;

A poesia exilou-se

da vossa lascívia constante!

como pode haver poesia no verão

se se fizer ausente agosto,

e somos agora a sombra esculpida

a lágrima seca, o grito sem voz,

a lembrança preterida 

e desacreditada, 

à semelhança da história atroz

do Pedro e do Lobo, que, 

no jargão popular, na boca do povo

gritamos estilhaço antes,

mas era fracasso, era ferida exposta

somos o estorvo 

do dia em que nascemos,

queremos que se faça 

um homem inteiramente novo

inteiramente humano,

derrotado o servo, o escravo,

o lasso resquício do engano,

E outros como eu darão um passo

e nem o gesso e nem o aço

amortalharão as nossas vozes

E a poesia só é parida

quando se calarem os obuses

e os abutres que patrocinais, 

e para haver poesia

 dentro de nós 

deve germinar essa semente

que se deixa contaminar

por uma causa maior,

uma qualquer melodia,

uma ignescência

um grão de fé, 

um caule de infantilidade

uma sólida verdade

ao invés dessa mesquinhez sórdida

assassina, 

que é feliz quando discrimina! 

Havemos de dar palco

à comunidade.

Senhores políticos,

habilidosos em demagogia,

a vossa conformidade 

mata a poesia

e obriga a mão 

a escrever basta,

que já bastam 

os bastões frugais

dos vossos offshores, 

dos lindos outdoors

da vossa leviandade,

senhores doutores da política, 

a vida não é académica,

é tempo de gritar chega de prosa,

de se gritar os assombros e a injustiça

mesmo que seja para chamar bandida 

a esta vida sem eira nem beira,

que se eleja a via sistémica

dos nossos egrégios avós,

que carregamos no adn 

e dessa ancestralidade

que não seja só alvoroço

dentro do peito

acabe-se a cobiça, 

alvíssaras ao escrutínio,

que se faça justiça

e mesmo não sendo do vosso jeito, 

é algo que tem de ser feito,

desfeito o engano,

chega de cegueira, 

chega de mesmice

chega de mentiras e 

do disse-que-não-disse

chega de dinheiro 

estourado no alheio

chega de extorsões, 

de manobras, 

de concords e de paródia

de vendilhões e de paleio;


Entre cavernas, escondida,

na verticalidade 

só pode haver poesia

quando se for 

humano de verdade

quando entre nós 

não houver diferença

quando esta vos fizer 

crescer sentimentos

em lugar da maldição proferida,

contra tudo e contra todos,

contra as cores, 

contra os imigrantes, 

contra os emigrados,

que lhes chamais refugiados

também vós sois estrangeiros,

também vós vereis morrer 

a vossa paz e a infância

e lhe chamareis utopia,

quando enterrardes a poesia

ao lado dos vossos filhos,

algures longe do coração

e vos aterdes aos quarteis 

aos barris de petróleo,

às carcaças de animais,

às revoluções sociais, 

marginais somos todos,

uns menos e outros mais, 

não espereis da 

poesia escravidão, 

ela também nasce 

em berço imundo

que o fecundo se faz estéril 

a flor de lótus assim cresce

o que não pode esquecer e esquece

e a todos estremece é a imensa

podridão em que a sociedade cresce.

Deem uma cadeira à poesia

para que ela se sente

e deixem-na morrer de cansaço

face ao vosso desprezo 

pela cultura e arte, 

pelo sustento de bastiões de guerra

em detrimento da paz mundial

A poesia é fodida cordialmente

pela desumanidade global

pela vossa ignorância

Quereis poesia? 

Elevai a fasquia da vossa empatia

e estendei-a ao coletivo e à sua pluralidade.



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