O sacerdócio da enganação

 



Durante muito tempo tentei vasculhar de quem herdei a severidade. É um traço visível da minha fisionomia que tem afastado muitos. Não é que me tenha importado assim tanto, mas já analisei os parentes próximos. Havia promiscuidade no meu pai, mas era severo na educação dos filhos, quando se fazia presente e, de entre todos os meus irmãos, o mais novo é, certamente, o mais autêntico e o menos austero. E tem um sorriso bonito, quando a vida lhe corre bem. Depois de ter assistido a tantas flutuações da vida dele, o álcool, as drogas, as deceções e o desemprego, olho para ele, agora, que o pai se foi embora, desta vez não para a vida dupla que tinha, aqui nesta terra, junto da minha mãe ou na outra, lá longe, na base aérea, onde outros irmãos meus nasceram. Não fui procurar. Nem quero conhecer. O meu pai já dorme na casa eterna e a minha mãe está quase cega. Do somatório das dores naturais de uma mulher que teve de aprender sozinha a criar os filhos, enquanto o marido fazia filhos noutras terras. O meu irmão mais novo chama-se Herculano. Nunca pensei que arranjasse a vida, que conseguisse ultrapassar os muitos desgostos e vícios, mas ei-lo, pai de dois meninos e a minha cunhada carrega mais um no ventre. E embora a severidade seja um traço nele também, ali, junto da sua família, nunca o vi sério, ao contrário, sempre sorridente, feliz. Quem diria!? Trocei tantas vezes dele, que não se endireitaria, o meu próprio pai rezava o mesmo, que era fraco e que os vícios e a tristeza o haviam de comer cedo. Tenho este traço herdado do meu pai, e outras características isoladas. Posso perfeitamente lembrar-me que já ousei uma vida mais séria. Quis estudar para padre. E por ser o mais velho dos rapazes, sei bem que não o fiz e não foi por falta de recursos, porque o meu pai se desbragaria para que eu estudasse, porque era popular, porque todos diziam que era inteligente, que tinha pinta, que seria o que eu quisesse ser. Assim, quando fui para a tropa, levava essa ideia comigo, que iria tornar-me no primeiro padre da família. A minha mãe apreciava-me a ambição. O meu pai, quando aparecia, de longe a longe, garantia-me que eu seria o que quisesse, estudar, pois claro, o que quiseres meu filho! Mas ajuda a tua mãe! Sabes que és o homem da família na minha ausência. E era. 

Com ela, cultivei campos e searas, fiz brotar da gravilha as batatas e todos os legumes que nos mataram a fome. Rasgava valas no meio da areia e estrumava tudo, o suor era um grande companheiro e o que me valia, a mim e à minha família era a minha força e tenacidade. As minhas quatro irmãs eram preguiçosas, empurravam umas para as outras o trato das roupas, a limpeza e asseio das divisões da casa. As refeições eram sempre a correr, como se algum de nós fosse apanhar um comboio ou um barco, e a cozinha era arrumada na mesma velocidade. Tropeçavam umas nas outras a ver quem se despachava mais depressa, para irem namorar, para as festas, para terminarem a noite no cais ou na praia, e vi-as, nestes anos todos, chorar bagadas de sonhos, porque elas traziam na alma o desgoverno de outras vidas. A minha é que estava aprumada e bem planeada. Iria ser padre. Numa qualquer paróquia, talvez chegasse a bispo ou assim. Não me subestimassem. Poucos o fizeram. 

Na tropa, estava fascinado, foi lá que tirei a carta de condução e que me fiz homem. Também foi lá que vi as minhas certezas imaculadas manchadas de dúvidas. E no respaldo, daquilo tudo, hoje ficou-me só uma certeza. E se nenhum homem era de ferro, um com vocação para Jesus Cristo teria que ser. De ferro. Olhava os meus parceiros de quarto, de caserna e tentava adivinhar-lhes os sonhos e ambições. Nunca disse que a minha ambição era ser padre. Nunca. Só a minha família o sabia. Era vocação. Na tropa, descobri que a minha possível vocação teria que aspirar ao teatro, não me refiro aos palcos onde os artistas simulam personagens, mas aos próprios palcos da vida. Pensei muitas vezes no porquê de me esconder, até de mim. Um ranhoso, sem habilidade para jogos e nem para engates e nunca me tinham interessado as miúdas. Disse-me muitas vezes a mim próprio que, talvez fosse por ter a casa recheada de mulheres, que eram as minhas irmãs, a minha mãe, as amigas das minhas irmãs, que entravam sem pedir licença, e a quem tantas vezes tive que dizer não, não, não me interessavam as meninas. Só queria ser padre. 

Naquele dia, estava de faxina na cantina. Havia novas corporações e cabia-me ajudar a limpar a messe, os sanitários, a cozinha. Com a chegada destes jovens, não me passou despercebido um dos coronéis que se sentara na conversa com os maçaricos. Tinha um ar grave, um porte majestoso, até me fazia lembrar o meu pai nos trejeitos. Alguém gritou o meu nome. - Ribeiro, vai ficar aí especado, homem? Olhe que há muito para fazer. -  Concordei. Não era graduado ainda.  Limpei sem vontade nenhuma o chão da cozinha cheio de gordura, o odor da mistura usada para estes serviços rompia-me o raciocínio e fazia-me latejar as fontes. E fui-me com as esfregonas e os baldes para os malditos sanitários. Não posso precisar como aconteceu ou se estaria escrito acontecer daquela maneira, que veio a ser o balde de água fria, bem mais tarde. Mas não naquela hora. Estanquei no corredor do sanitário, ouvi claramente um barulho que veio a torturar-me durante anos a fio. Mas eu encarnei bem o personagem. 

Pé ante pé, entrei na fila dos lavatórios, e vi as portas entreabertas das sanitas. Eram doze. Todas entreabertas. O ruído vinha de uma delas e depressa vi a imagem que me perturbou durante muito tempo. Ainda hoje é o dia que fico hirto e entendo que foi ali que a minha vida deu click. O coronel em pé, sem o casaco, as calças puxadas para baixo até à altura das coxas e um dos soldados novos, ajoelhado entre a parede e a sanita engolia o sexo do coronel, agarrado às suas pernas, enquanto o coronel lhe empurrava a cabeça contra o seu corpo, vermelho de excitação e, olhando-me, sorriu e continuou a esfregar a cabeça do magala contra o seu sexo. Senti-me enfeitiçado. Fiquei ali, parado, ouvindo aquela boca engolir e o coronel gemer e o meu próprio sexo húmido e duro, podia senti-lo e, obviamente, nesse dia, exatamente nessa hora, o padre que havia em mim sumiu-se. Só ficou ali comigo a lascívia e o prazer, encantado por aqueles ruídos, perturbado pelas imagens reais, e, se eu caminhasse três passos, poderia tocar no coronel, limpar o suor que lhe escorria pela testa, ou interromper o magala. E isto durou alguns cinco minutos. A messe estava vazia. Éramos três ali dentro. Porque não fechou ele a porta? Quando consegui alguma razão, empurrei-me para dentro de um sanitário e aguardei não ouvir mais barulho. Ouvi a torneira do lavatório abrir e fechar, os passos caminharem e uma conversa curta e circunstancial. O soldado não me tinha visto, decerto. O coronel, sim. Mas nem isso tinha apagado o seu prazer, ao contrário, eu jurava que a minha presença ali lhe tinha aumentado o prazer porque a cena não encurtou, continuou, demoraram algum tempo, até os ouvir sair. A minha respiração estava difícil e entrecortada, ofegante. A minha cabeça estava a andar à roda, como se tivesse bebido muito álcool e as minhas mãos só pararam de esfregar o meu sexo, quando me esporrei todo, também eu a suar como um porco, também eu duvidando de tudo, de quem era eu, afinal, de onde saíra aquele animal que havia em mim que, diante de uma patente, ficara como o coelho diante da serpente, enfeitiçado e febril? Fiquei possuído e durante uns quinze dias, desejava voltar aos sanitários, mas só o fazia quando estivesse a messe cheia ou, então, quando me tocava de ir limpar, e tentava sempre assegurar-me que não iria encontrar nenhum dos dois por lá. 

Quando tive licença para sair e voltar a casa, fi-lo, mas já não era o mesmo. Faziam-me muitas perguntas, se a comida era boa, se gostava, se era obrigado a levantar-me durante a noite para fazer exercícios, enfim. Falar do que vivia lá aborrecia-me. Notaram-me mais distante, mas não me importei. Procurei o Johnny, com a desculpa de umas cervejas. Precisava de falar, embora soubesse que nunca me atreveria a dizer-lhe nada. E ele era uma mente aberta, um verdadeiro playboy, sempre em busca de prazer imediato, cercado de muitas mulheres. Depois de umas cervejas e alguns jogos de bilhar, o meu amigo queria era as amigas, queria ir foder. E eu sabia disso muito bem. Ele deve ter dado conta que eu não estava bem porque me obrigou a ir com ele, buscar a namorada e uma amiga dela. Lembro-me que estávamos no carro, eu atrás com a amiga da namorada dele e ele na frente, os seios dela à mostra e esgueiraram-se do carro, e vi-os irem em direção ao relvado curvado, mesmo em frente ao rio. A noite cheia de estrelas e a amiga dela começou a beijar-me e a apalpar-me e eu não queria dar parte de fraco, nem lhe dizer que a minha vocação era de padre, porque já tinha descoberto que não, essa encenação já não mo permitia. E aceitei os avanços dela e o meu pénis murcho e os seios dela tesos. Quando a vi procurar os nossos amigos, através da janela do carro, fiquei possuído pela imagem do coronel, e beijei-a na boca e arrastei-lhe a boca para o meu pau que se endireitou e fechando os olhos, a minha cabeça voltou a girar, a boca dela a querer voltar à minha e eu e empurrá-la para o meu sexo. Era só isso que eu queria dela. Mais nada. E antes que ela voltasse a sair, esporrei-me dentro da sua boca, inundando-a de esporra. Pedi-lhe desculpa, mas não me sentia culpado de nada. Ela queria prazer. Eu fui buscar o meu. Os meus dias de padre tinham terminado. 

Voltei ao quartel, ansioso, dentro de mim a imagem do coronel alimentava-me a alma. Já poucos poderiam falar do Ribeiro, dizendo que era medroso, ou que era sério demais, prepotente demais, era um novo Ribeiro e eu próprio não me conhecia. Passava algumas licenças sem ir a casa. Numa quarta-feira, já o inverno tinha entrado, fui chamado ao comandante, que precisava que eu conduzisse o coronel ao local onde outras fileiras treinavam. A formação militar nunca terminava e nem as campanhas. Estava frio, mas dentro de mim, fez-se verão outra vez. Temia olhá-lo nos olhos, evitava sempre a sua presença, mas no fundo, era o que eu desejava mais. Não me perguntava porquê. Nem queria saber. 

Eram três da tarde e a viagem demoraria no máximo uma hora e meia. Uma boa parte da viagem conduzi tenso, até que o coronel me pediu para fazer um pequeno desvio, que conhecia um atalho e que queria ir buscar uma garrafa a um amigo e depressa estaríamos no nosso destino. Não queria partilhar aquele momento com mais ninguém, nem conhecer os seus amigos, mas pensei que até determinado ponto, isso era bom, porque estaria mais tempo em viagem e quando voltasse ao quartel só teria que descansar para o dia seguinte, nada de limpezas e nem aturar as bebedeiras dos graduados. 

O parque natural era de terra batida, mas em muito bom estado e depressa chegamos ao local pretendido. Pediu-me que o esperasse, que não demoraria. Vi, pela janela daquela casa um homem magro dos seus sessenta anos ou mais e um gato alongarem o olhar na minha direção. Logo a seguir, saiu o coronel com uma garrafa na mão, entrando no jipe. Pediu-me para parar uns metros à frente e entrar numa clareira, obviamente conhecida dele. Assim fiz. Ele saltou do jipe e foi urinar atrás dos arbustos e quando voltou disse-me: - Ribeiro, hoje saiu-te a sorte grande. Vamos beber um vintage à maneira. Abriu a garrafa e deu uns tragos valentes, empurrando a garrafa na minha direção. Não hesitei. Bebi dois goles. E o meu coração disparou. O meu sexo empurrava a calça como se fosse o maior empecilho. Ele sorriu, lascivo e voltou a devolver-me a garrafa. Começou a abrir a braguilha e eu juro que fiz o resto. Baixei-lhe as calças até aos joelhos. Voltei a beber e ele abriu-me o botão das calças e arrancou-me os boxers. A garrafa na minha mão e o pau dele reluzia a chamar a minha boca, mas foi a boca dele que se cravou no meu sexo, arrancando-me um grito de prazer. 

-Coronel, esta é a minha primeira vez. - Gaguejei, a saliva crescia-me na boca e só sabia que me chamava Ribeiro e que era virgem. A boca dele largou o meu sexo e deu-me um beijo com o sabor do meu pau e gemeu, também ele, e disse-me ah Ribeiro que se fodam os magalas! E começou a chupar-me outra vez e eu queria que aquele momento durasse eternamente, que não houvesse pressa e nem tropa, nem nada. Fomos para o banco traseiro, engoli o pau dele e ele perguntou-me se gostava de sexo anal. Eu disse-lhe que não sabia responder-lhe, que nunca me tinha acontecido tal e enrolamo-nos no banco, a boca dele no meu pau e a minha no pau dele. E o mundo podia acabar ali. Não fazia qualquer diferença. Ele soube abrir o caminho. Deixei de ser virgem. E tive a certeza, no meio do povoado de dúvidas que estava apaixonado. Por aquele coronel. Andamos três meses, encontrávamo-nos em todo o lado, ficamos bons amigos. Até ao dia do acidente. Não sabia se tinha sido uma bomba, se aquele objeto estava no caminho. Aquele descampado era bom para velocidades e eu gostava de dar gás. E ele estimulava-me o apetite do acelerador. Com a música dos Smiths nas alturas, zás. Rebentou-me todo. Acordei no hospital militar todo em frangalhos, um braço partido, duas costelas moídas que me apanharam a lombar, a cara toda desfeita e disseram-me que tive sorte. Quem ia comigo, não tinha tido tanta sorte. 

Desde então, procuro arrastar-me na vida. Não sei se é Deus ou o Diabo que trago comigo, talvez carregue a ambos. Sei que já casei e já me divorciei. Tenho uma filha de quatorze anos, com quem mantenho contacto, de longe a longe. Voltei a casar. Gosto de tudo organizado. A minha mãe ficou mais sossegada, desde então, embora cega. Nem sei se a voltarei a ver com vida. Arranjei forma de contornar a dificuldade que tenho em amar uma mulher.  Ando em missões no estrangeiro. Já enterrei mais amigos do que se deveria. E, ao contrário do que poderia imaginar, sou um gajo difícil de mudar de ideias. Não voltei a ser feliz, nunca mais pude ser feliz. Ando zangado com Deus desde que ele me salvou do acidente, que preferia ter morrido. Seria mais decente comigo.

Acredito no destino. O meu vem sendo cruel. Vivo uma peça que escrevi, escolhi o pior destino para o protagonista. Eu. Não me dar a liberdade de ser eu mesmo. Existo num mundo de homens, onde a grande maioria deles que gosta de pau, finge que gosta é de mulheres, porque a sociedade ainda marginaliza os diferentes. Como se eu ser homossexual fosse uma doença. O meu pai diria que sim e até os meus amigos. E dou comigo a pensar que o sacerdócio teria sido melhor escolha, porque me permitiria outras coisas, outras liberdades, mas a coisa, no que diz respeito ao prazer, e a quem sou realmente, não mudaria. Que um homem nasce para viver o que é seu e não dos outros. A seriedade passou a ser o traço mais marcado em mim. E quando preciso de sexo, como um animal e não encontro o que me console, fecho os olhos e vejo o coronel, naquela mata, são só uns minutos de prazer verdadeiro e depois termina tudo! E faço como os outros, como todos, escondo-me nesta roupa de vergonha e medo e vou respirando outra identidade que não a minha. Mas até quando?




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