Uma máquina de matar & um veterinário com pistola de dardos




 Ela chegou aqui a casa com três meses, deixada pelos trolhas que vieram fazer obras de melhoramento particulares. Nunca me foi confidenciado da sua parentalidade, nem em que circunstâncias tinha nascido. Deixaram-na, sem olhar para trás. E como receberam avançado pelos melhoramentos, também não terminaram a obra. 

Ela era uma cachorra amistosa. Tinha por companhia um velho labrador que foi adotado à instituição Animarco, do tempo em que vivi no Marco de Canavezes. O Óscar acompanha-a para todo o lado e brincou com ela, dentro da sua capacidade. Já era velhinho na altura. Ainda assim, aquando de entrar no seu primeiro cio, foi com ela, esteve com ela, como se fosse uma espécie de anjo da guarda. Continua ao lado dela. Hoje está mais velho e mais cansado.

À medida que a Kirie foi crescendo, comecei a detetar traços de personalidade agressivos, de bullying com o obediente e velho Óscar. Mesmo no cio, tentava se colocar em cima deste e como ele não reagia, mordia-o no pescoço e no lombo. Repreendi-a inúmeras vezes, não só pelo comportamento abusivo com o Óscar, mas também com os gatos, que os perseguia, e a sorte é que sempre que subiam a árvore, estavam a salvo. Quando ela tinha ainda sete meses comigo, mordiscou-me na mão, num ataque de fúria que não consegui compreender. Recorri aos serviços da câmara, o canil municipal, para que a recolhesse, porque tinha tido um comportamento descabido com quem lhe dava de comer. O canil rejeitou ajuda, das duas vezes que lá me desloquei, alegando não ter infraestruturas para poder resolver o meu problema. Tentei conciliar e dei uma nova chance a esta cadela.  O tempo passou. Ela passou a respeitar os outros animais, que se dispunham pelo pátio e jardim, pela churrasqueira e no umbral das janelas. Depois de adulta, nunca consegui que entrasse para o meu carro, nem dentro de casa. Recusou-se sempre. Nunca medi forças com ela. Telefonei imensas vezes para várias instituições, a fim de receber o auxílio necessário, ela necessitava de chip, de vacinas. A única ajuda que recebi foi através da clínica privada local que, na figura da sua veterinária principal, se deslocou a minha casa e tentou colocar-lhe o chip. Não foi possível, porque a cadela refugiou-se na adega da casa velha e ela disse-me que a cadela estava prestes a atacá-la, que aquele comportamento era tipicamente territorial. Concordei com ela. A veterinária disse-me que só haveria uma forma de resolver a questão: iria falar com um veterinário, seu colega, de Valongo, pois era o mais próximo que conhecia com esse instrumento de dardo, para, à distância, anestesiá-la. Nunca mais recebi nenhuma resposta. Há cerca de um ano, o vizinho veio queixar-se que a minha cadela tinha dilacerado a pata do seu cão. Perguntei-lhe quanto lhe devia e pedi-lhe para fazer queixa à polícia ou às entidades competentes, acreditando que assim, dando-se conta do perigo que consistia, viessem resolver-me o problema. Tal não aconteceu. Nem a veterinária voltou a entrar em contacto comigo, nem o vizinho fez queixa de agressão.

Nessa mesma altura, recebi dois agentes da polícia e a veterinária do canil municipal, alegando terem recebido uma queixa de que os meus animais eram subnutridos. A veterinária olhou os cães, os agentes da polícia afagaram os animais e disseram ser ridícula a queixa recebida, pois nenhum deles estava subnutrido, ao contrário. Nessa altura, disse-lhes que o problema da cadela era ser agressiva, que já tinha recorrido ao serviço de uma clínica privada local e não me tinha resolvido a questão. Alegaram que, relativamente a isso nada podiam fazer, uma vez que ela não tinha atacado pessoa nenhuma, mas que eu sabia que ela tinha que ter chip e vacinas regularizadas e que só poderia ter dois cães. Foram embora e mandaram-me esquecer a queixa dos vizinhos. Não esqueci a agressão dela ao rosto da minha mãe. Por um triz, ficava sem nariz. 

Voltei a tentar que me auxiliassem, mas nenhuma clínica nem instituição tinham o dardo disponível, nem veterinário disponível e algumas delas, bem distantes daqui, perguntaram-me porque tinha que recorrer a instituições tão longe de casa, se havia instituições locais que deveriam ajudar-me. Não soube responder. Apenas frisei que não possuíam a pistola de dardos, a fim de a adormecer. 

A cadela teve nove cachorros. O meu filho mais velho conseguiu pais adotivos para todos eles, e como alimentar, afagar, cuidar de animais requer mais do que dinheiro, o meu tempo vai estando cada dia mais comprometido, cuidando da minha mãe com oitenta anos. Antes que a cadela entrasse em novo cio e assim que a última cria foi embora para a sua nova casa, entrei em contacto com a clínica local. Precisava esterilizá-la e necessitava dos seus serviços. Pediram-me que entrasse em contacto com a Animarco, pois a instituição possuía pistola de dardos e me ficaria mais em conta esterilizá-la numa instituição dessa envergadura. Porque a minha cadela não é subnutrida e sim, deve pesar à volta de trinta e cinco ou quarenta quilos. Seguindo a sugestão da clínica privada local, liguei para a instituição Animarco, e novamente, me repetiram que não só não tinham pistola de dardos, como também não tinham veterinário. Este é um jogo de empurra. Se não sei resolver o problema, empurro para outro lado. O que é certo é que, depois de muita insistência minha, acederam em marcar a esterilização e prescreveram a Gabentina a 400 mg em cápsulas, instruíram-me como devia iniciar a medicação (iniciava no domingo a tomar uma cápsula apenas e na quinta, dia da esterilização, daria duas) e a cirurgia seria feita na quinta-feira, pelas dez e quarenta e cinco. Durante a semana, fui lá e comprei uma coleira e uma trela, para que, quando a viessem buscar, ela pudesse ir atrelada. Ontem cheguei das compras e pedi ao meu filho para me ajudar a colocar a trela na cadela. Mordeu o meu filho. E o meu filho, tentando controlar a sua ira e continuando a afagá-la e a falar com ela, mordeu-lhe a outra mão. Considero que a situação ultrapassou os limites. O meu filho que, tal como eu, tenta entender o comportamento dos animais disse-me não entender o porquê desta reação, que provavelmente lhe estará no adn, que trará tal comportamento violento dos progenitores ou então, alguém tentou fazer-lhe mal, aprisionando-a, ou, usaram a violência com ela através de uma trela. Não conheço especialistas em comportamento animal. Não sou a favor da morte. O meu filho diz-me, sabiamente, que não se mata uma pessoa porque tem comportamentos agressivos, que a primeira medida tem que ser o tratamento. E eu concordo. Porém, salvaguarde-se que não me encontro na disposição, por amor a este animal, a que ela magoe ou mate alguém. Preciso de auxílio. Agora. Já, o quanto antes, porque nunca prendi esta cadela, nunca usei de coleiras e nem trelas. A não ser as coleiras anti pulgas, enquanto mo permitiu, e as pipetas, e nunca fui seriamente mordida por ela. Hoje tenho medo dela. E medo por mim e pelos outros. Um animal que morde quem o alimenta, algum problema sério tem. Numa comunidade, é necessário haver os serviços mínimos e não esperarmos que os problemas sejam suficientemente graves para resolver. O que me parece é que obedecemos todos a uma forma interna de procrastinar que é empurrar com a barriga, até não vermos o problema e, quando este se intensifica, deitamos as mãos à cabeça e as trancas à porta. 

Hoje, quando os veterinários vieram para a levar, a cadela ameaçou com os dentes, ao de leve, o enfermeiro, e quando a veterinária que esteve aqui há cerca de três anos chegou com o injetável para a sedar, disse-me que não era domadora de feras e que tinha informado o veterinário de Penafiel há três anos sobre esta cadela e que o mesmo lhe tinha dito que havia estado aqui e que eu recusei que ela fosse levada. A mentira tem perna curta e tudo se sabe, é uma questão de tempo. Nunca recusei que ela fosse levada para tratar ou para ser adormecida. Nunca cá vieram com a intenção de resolver a questão. A única vez que recebi aqui em casa o veterinário da câmara, veio acompanhado com dois agentes e porque receberam uma queixa dos vizinhos, ofendendo-me, dizendo que eu era responsável pela subnutrição dos mesmos e que uma vez que não havia qualquer subnutrição e que ambos estavam bem tratados, se iriam embora, dando por encerrado o problema. O deles. O meu continuou. Tentei sempre desvalorizar a gravidade da situação, face às respostas que fui tendo de falta de apoio. Sempre tive cães e gatos, sempre cresci com animais, mas nunca tive nenhum que fosse violento. Neste momento, não estou capaz de lidar com a cadela e não possuo conhecimentos sobre comportamento animal que possam continuar a servir-me para manter esta desvalorização. Eu tenho um problema grave. Chama-se Kirie. E este problema pode se agravar, tendo em conta que não vivo sozinha no local e que a cadela sai da propriedade e não tenho forma de a condicionar. 

Não obstante a veterinária ter saído daqui, garantindo-me que iria tentar trazer aqui o veterinário da câmara, mas porque o que precede tudo isto é a mesma promessa com três anos, disponibilizo o texto, na expectativa de que, desta forma e desta vez, o problema seja controlado.  

Reitero o pedido de ajuda. A quem conhecer um veterinário que possua forma de adormecê-la, para a tratar ou para a adormecer definitivamente, agradeço. 






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