Segmentação por etapas

 






Etapas. 

Vivi a fugir das consequências, das reticências, ora do que escolhiam por mim, ora acorrendo às necessidades grupais, para nos salvar. Sou o penso depurativo, às vezes o atrito, outras o placebo com o mero objetivo de me anular. Não queria que fosse assim, cada um no seu quadrado! Nem que doesse, a separação. E eu sempre acreditei que o amor não tem limites. Vasculho na memória do passado e de toda a infância, vou às gavetas que certamente nos ofereceriam respostas, mas talvez nenhum de nós se veja preparado para essa clarividência, para isso, que é desmontar tudo, peça a peça, com mea culpa e confissões, que chegassem essas respostas sem filtros, que possam mostrar-nos que não fui só eu que falhei, ao doar-me, que não fui eu quem mentiu, quem trouxe desonestidade, quem perpetuou a desintegração, que se alimentou de controle e manipulação. Na verdade, preferia que dependesse de mim. Preferia ter sido eu, porque saberia como concertar e a minha estrutura é de criação, de entrega e doação. Clarificaria tudo. Faria o possível e o impossível para alterar a dor, transformá-la numa outra coisa que acrescentasse a cada um de nós, que não deixasse as cicatrizes, sem uma lição. O amor tolera tudo, supera tudo. A ignorância ou a continuidade da negligência incapacitam o tratamento. Queria dizer que não dói, seria mais fácil para os vossos ouvidos, se eu dissesse por favor, tudo será diferente desta vez, mas de todas as vezes que me disseram que devo seguir instruções, na minha própria vida, a minha tolerância tornou-se um elástico tão flexível que se eu esticar, parte. Não quero a queda da estrutura, não posso permitir que a dor esgace todos os membros, protejo a debilidade e a fragilidade da estrutura, mas estou tão cansada, a dor escala e sobe, por camadas, a liquidez da ausência de sentimentos e a falta com a verdade não produz cura, ao contrário. Mostro-vos, faço-vos os desenhos através das palavras, gesticulando muito, uso o recurso das pausas e controlo-me para que o meu coração não frature nessa operação. Oiço o eco das minhas próprias palavras, mas e o resultado? que se não altera, que se mantém aprisionando a minha vida, como se eu tivesse vindo, apenas, como auxiliar e cimento da vossa vida, como se fosse somente matéria sem coração, como se eu não tivesse mais serventia do que esta, a de vos servir? Sequestro a minha identidade para vos fazer felizes, e então? Porque não sois? O egoísmo conduz todos nós ao abismo do todo. 

Trago a voz trémula, o sofrimento entalado, escondo até de mim esta febre que me fazeis, quero poder sair sem o peso da culpa que me atribuis por querer ser mais do  que cimento aglutinador, a cola que mantém as juntas, e vós olhais-me  com dedos acusadores, com olhos de vitimização, não posso continuar sendo cimento e cola, que possais ver que também eu respiro, que também eu mereço sair da estrutura, respirar fora desta instituição que só existe, porque eu sou os pilares e o teto, as paredes e os utensílios, a mesa e a cama. Não aguento mais castrar-me para que vós possais continuar a usar-me tapete, criada-de-quarto, culpa e decreto! Recuo tantas vezes no tempo e olho-me agora, sem os tais filtros apaziguadores e vejo-me nua, como sou, esta criatura que tendo sido criação, para manter estrutura, também é criadora, mais que conciliadora, mais que cobertor. Quero experienciar-me ser vida, fertilidade, sem a prisão, sem o fardo, sem a obrigação, sem tal pudor. Do amor não sabeis nada.

Num outro ângulo, enquanto fomos passados e presentes, enquanto presos no retângulo familiar, talvez tenha sido eu a doadora e a matéria, a criadora e a criação, talvez seja culpa minha a de ter mantido a ilusão da tipicidade nuclear. Duas passadas atrás e vejo a casa e o jardim, as portadas abertas e o pomar, a sacralidade que só existe dentro de mim e o abandono de todos os matizes que podíeis ter acrescentado. Nessa outra posição, vejo o entorno da criação, débil e doentia, frágil e frugal, sim, mas castradora, e sou mais que a casa, que o pomar, que o jardim de adornos, mais que os contornos da instituição, sou também o céu, a nuvem e o sol, e da casa a porta, e dos limites o portão. E onde construí a habitação, pendurei-me a mim nessa pausa que não sabeis ler que também eu respiro, que também eu sinto, que também eu mereço a paz que tentei construir, para vos oferecer. Que quero ser também um pássaro em voo errante, um pássaro que não colocam na gaiola, ou que lhe atribuem coordenadas específicas e temporais, quero voar muito mais, quero me cumprir, que para vos agradar, deixo eu de existir e ser somente a carcaça da casa que vos serve, um apanágio familiar, um apêndice tentacular. Tereis que aprender a perdoar-me, porque eu já vos perdoei. Tereis que aprender a não depender de mim para sereis vós casa, cama, teto, paredes e portão. Demito-me dessa função.

Abano os cortinados, enquanto vejo a tempestade chegar, a trovoada tomar conta de tudo, os estalidos agressivos retirarem a suposta passividade do lugar. A crosta da ferida de me ter doado até ao expoente. Abro as janelas, que tudo seja erguido e arejado, que os golpes acertem o que está em falta e completem a limpeza! Que a rutura seja somente o sinal de que a vida se não pode condicionar, que o lugar se converta no que deus quiser, mas que nessa nova realidade, eu deixe de ser a prensa para vos fazer ficar, o enraizamento nuclear, que nascemos livres para ser e edificar, mas fora do amor há limites, que são os limites do outro, de mim, do que penso e do que sinto, de quem sou, e nesses limites, sou a que contesto,  a que atesto a minha alforria, a reivindicação, sou a mesma, mas quero viver, tal como vós. Permito mil tempestades, se nelas me encontrar de novo. Hoje quero a alternativa do que me faz partir. O combustível de vida para me realizar é, ainda, o sonho que me não limita, o grito libertador do meu espírito, a consciência do caminho em frente. E se os meus lábios vos não sabe fazer o desenho do que digo, deixo a música como testemunho do que não sabeis compreender. Oiçam, eu respiro. E tenho saudades de mim.

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