O mar de Brahma
Andei às voltas da casa, no pátio traseiro, no colmeeiro, saí pelo portal com dificuldade. A madeira está perra, raspa o esteio de pedra no chão. Tem dias que só me apetece derrubar tudo à minha passagem, como se fosse um tornado, continuar a caminhar e no meu regresso, não encontrar mais este sítio, onde tenho procurado, sem achar, a fé em mim, no depois de amanhã, que não sei se vai ter sol ou sequer amanhã, que desconheço se volto a ver o mar ou, ao invés disso, me arrastarei até às margens da ribeira mais próxima. Vejo os frutos serem devorados pela terra, à medida que amadurecem, vejo os animais entre as ervas devorarem os seus restos, vejo as folhas se sumirem pelos primeiros ventos outonais, e as chuvas lavarem tudo, lambendo os resquícios do estio, e arranjarem lugar para todas as velhas folhas caídas, e também tenho visto a estação intercalar-se e trazer novas flores e rebentos e o céu tenso se desfazer em mil gotas, aliviando-se nos abris todos. Tenho andado de roda de mim mesma, vigilante, pressentindo o que vai vir e ainda não decidi o que me faz mais falta, se a minha liberdade ou ver toda esta servidão a que não vejo o fim se despenhar, sem sombras, nem adornos e nem mais postergações, ou se me empurro para mais um entardecer ou desisto, assim como desistem alguns, que, sem se suicidarem, se deixam morrer, que largam a temperança de procurar a fé em si mesmos e se entregam às trevas que existem na sua ausência. A esperança é ainda um sonho de menina que carrego como a um filho, dentro de mim.
Andei de roda das minhas caixas todas, deus, tantas caixas inúteis, onde guardo os itens todos de quem fomos, e a luz torna estes momentos difíceis, porque me dou conta que já aconteceram, que realmente existiram e que me tornaram quem sou, encontro os vestígios da fé que eu tive, apago as luzes, com receio de que não seja suficiente para me levar até ao mar. E pergunto-me a mim própria porque não deito tudo fora, porque não carrego essas caixas inúteis para a mala do carro e as abro rente às ondas, para elas levarem, para elas dissolverem as fotografias e cartas, tudo o que trago dentro, do que fomos, do que não pudemos ser, dos momentos e episódios que me cravaram em todo o lado riscos e ranhuras que tempo nenhum comeu. Encontrei os meus amuletos, e não tenho tamanho nem força, sou só vagar e cansaço, e nunca compreendo o que me prende aqui, se são os dias, se a vida, se o cansaço, se a fé espalhada e fraturada entre as nossas fotografias. Nunca conseguiria recolher tudo sozinha. Espalhei os livros e imagino a mais bela fogueira que faria se mo fosse permitido. Era isso que faria, imolaria todas as lembranças dentro dos livros, todas as expressões que me acorrentaram a um dia mais, um ano mais, uma vida inteira num mais do menos a que me obriguei.
Porque me detive nos problemas dos outros, tentando sanar as maleitas deles e não as minhas? Porque não concentrei o olhar curador sob as minhas feridas em carne viva e fui tratar de amenizar as mazelas dos outros? Por que raios parimos a empatia antes de a praticarmos connosco, que somos dignos e merecedores? E dispomos os nossos recursos, a valentia, a fé e o amor numa devoção a todos os que nos veem sangrar e sorriem na nossa dor? Como se fôssemos uma espécie de cristos que nasceram para se deixarem derrubar, para serem julgados pelo excesso de compaixão e misericórdia! Pai, porque nos fizeste assim? As feras são indomáveis, selvagens e qualquer ímpeto de aflição nelas, qualquer debilidade, uma simples réstia de civismo ou abnegação, a sensibilidade ou humanidade podem despoletar a agressividade, respondendo à natureza fiel das suas vocações. Continuamos, afinal, cumprindo calendários, cada um com a sua agenda, uns fugindo de si mesmos e outros se projetando para a sua interioridade. Que fazemos com o amor que trazemos, a não ser, refugiados da maldade, resguardados e a salvo do abismo dos outros, canalizarmos o fruto para sementes que se espalham pelo universo? - Tanta luz de tanta cor, em fontes de fogo espalhei para o universo todo, sem apego por nações, colorindo, semeando e projetando o que de melhor há em mim! E o progresso das sementes dirá um dia que o amor se espalhou, se multiplicou, que foi uma nuvem de brilho superior, como as poeiras do Sarah, que contaminou várias regiões. E comentarão nos noticiários, nos jornais, nos diários, nos blogs e só depois nas prescrições medicamentosas que o amor jorrou abundante, que cresceu ante a guerra, adiante dos conflitos, entre os aflitos e os arrogantes, que se precipitou e acalmou os ânimos, que contornou os atritos, que venceu pelo lado emocional os patrões do mundo, os donos disto tudo, os déspotas e os psicopatas, os tecnocratas e os egoístas, que o amor emprenhou várias regiões do globo, que só se ouvia o amor pelas ruas, nas casas, debaixo das árvores, nos lagos e nas fontes, nos vales e montes, que esses dias se tornaram gregários da humanidade, como se Deus, finalmente, admitisse o seu cansaço dos homens e desistisse dos livres arbítrios concedidos, que os deuses podem tudo, que as regras do mundo mudaram e que são regidas agora por novas forças que promovem o contrário da cobiça, da estultícia, do medo e da vergonha, da injustiça e da peçonha, da ignorância e da enfadonha preguiça de retificar sem malícia, as coordenadas do novo mundo. Recuo outra vez.
Andei entre as ervas altas, e ainda há um mês o trator as mutilou. Queria ter força para desenterrar aquele dia específico, onde a fotografia dele, emoldurada e grande foi empurrada por mim até se sumir. Eu queria desenterrá-lo, como o enterrei. Não me lembro como o fiz ou como tive essa capacidade, não me lembro, só me lembro das lágrimas e do desespero, do ranho limpo nas mangas, do sangue nas minhas mãos tingirem a saia e a camisola, do cabelo cheio de terra e de folhas de videira. Como fui eu capaz? A dor tem que ter um piloto automático e quando atinge o limite, permite-nos tudo, guia-nos até nos sacrilégios e atentados contra nós mesmos. Fugi dele, que ao ver o meu sofrimento, me abraçou e começou a apalpar-me os seios, eu fugindo dele e ele, cujos dedos eram tentáculos, me empurrava contra o balcão da cozinha, tentando introduzir os seus dedos no meu ventre, eu que era toda agonia e só precisava que me dissessem que amanhã, ele viria, amanhã esse fruto com o nome do meu ventre me daria conta que sabia dizer mãe, tenho saudades tuas, mãe, perdoa-me, mãe, a culpa não é deles mas minha, e ele, esse vulto cheirando a álcool e putas pensava apenas em si e simulava um carinho que só se satisfaria no meu corpo em sofrimento. Empurrei-o para nunca mais e nunca mais foi a chave para o afastamento. No momento em que necessitei, nunca tive amigos, apenas pessoas que me usaram e que me continuariam a usar, assim lhos permitisse. Não foi nojo dele, foi repúdio pela desumanidade. Sentei-me na pedra que já assistiu a tanta dor minha e nunca saberei se o minério onde habito recorda os meus risos ou se algum dia fui assim tão feliz que pudesse a este sítio fertilizar o ar em volta. Sei que fui feliz um dia, e quero agarrar-me a esses momentos a fim de me darem força, que o placebo não resulta. Francamente, não me lembro de me sentir feliz. Quando uma mulher se não lembra da chave ou dos óculos para a leitura, ou de beber o café depois de o servir, não há mal algum nisso. O pior é quando esquece que a lâmina a desestrutura por dentro, permitindo o caminho, a veia ao estilete. Eu queria ser forte. Precisava tanto de me empurrar até ao oceano. Depois de ti, é dele de quem tenho mais saudades, que sempre recebeu a minha alegria e as intempéries da mesma maneira, sempre me abraçando, rugindo e sustentando os meus gritos. Abafando-os de sal e espuma.
Andei outra vez na infância. Aquela queda serviu-me para a vida toda. O desvio aconteceu, e como se mantém, poderia dizer que foi um desvio para a vida. Peço a Deus comigo que não o mantenha para a eternidade. Mas aguento-o até ao desfecho desta vida. Tinha que ser. De que forma podemos rejeitar uma queda, uma dor, uma perda, se não nos cabe a nós impedir vaticínios ou interpor requerimentos? A coluna é um mal menor, os formigamentos nas extremidades são uma forma da vida me dizer que ainda estou cá, que ainda verei dias, senão estações, passarem ao meu lado e, eu ser somente a observadora que tenta o alinhamento menos arriscado. Pai, dá-me coragem.
Se Deus me permitir, hei-de ver o mar nesta vida, e sarar esta dor no seu corpo salgado. A madeira range à minha passagem, os morcegos continuam a assustar-me e resguardo-me, fecho a cortina, ponho música, e dou colo ao sonho, cerrando os olhos com força, um faz de conta que este corpo não é meu, que esta mente que me mantém aqui é de outrem já ido, e descanso o cansaço e a falta de coragem enquanto descerro os maxilares, enquanto liberto os pulsos desta tensão que me oprime. Hei-de ter ousadia, vencer-me pelo esquecimento e erguer daquele pedaço de chão a sua fotografia. E carregar a mala de caixas e abri-las junto ao mar, ver as ondas carregarem tudo o que me magoa. A tua ausência, os meus mortos e, talvez ao olhá-lo, e sentir a sua humidade nas mãos, e encher as narinas do seu odor e os meus olhos dos seus humores, quiçá ele me possa, em troca, devolver a alegria. Não me lembro de ter nascido para desistir, substituo o vocábulo porque sou uma resistente. Hei-de fazê-lo. Prometo-me. Um dia. E esse dia está a chegar.
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