Candidaturas involuntárias à dor
Haverá alguma medida justa no sofrimento? Poderá a capacidade de um ser humano ser avaliada ou medida por alguma escala onde não sobrem lágrimas e escasseie o sangue? Onde a política, a par com a religião, não estejam ou não sejam (n)a base da desumanidade criada na terra?
Tenho nomes na cabeça, mas muito poucos, para os tantos que já me inspiraram a caminhar, a acreditar na vida e a ser resiliente no amor. Muitos esqueci-os com o passar dos anos, às vezes lá vem um ou outro, mas na maioria das vezes são pedaços de texto que ficam agarrados a atos, que deram origem às suas palavras, a um discurso, nem sempre organizado, porém inspirador. Fazem caso disso, algumas centenas, porque quer-me parecer que teria que viver mais cinquenta anos, furando o meu tempo de trabalho, que se não vê (as tais porradas de tarefas de tédio, de rotina, domésticas, que quase sempre abominei), para "roubar" pausas de ócio, contemplando os muitos pontos de vista e experiências humanas de tantos autores. E nunca são só os escritores, nem só os músicos, muitos pintores e fotógrafos, escultores e professores, atores me têm apaixonado e anónimos desconhecidos com quem tive a feliz "coincidência" de me cruzar. Considero isso um achado para uma pessoa com visão limitada, tantas vezes rígida e pouco viajante, como eu. Uma verdadeira glória poder sentir-me apaixonada pelas artes e pela cultura humana que é revestida de tanto sofrimento e sacrifícios vários, de tanta gente sem rosto e de tantas máscaras que se vestem para dissimular as dores e as expressões humanas variadas. Quer a cultura, quer a arte são traduções das vozes sociais, políticas e psicológicas, a todos os níveis da psique humana. E quando tocamos almas, já temos sido arrebatados por elas e outras se veem arrebatadas, constantemente.
Quem vê o mundo hoje, se souber ler nas entrelinhas, poderá afirmá-lo, somos milhares de humanos a caminhar no mesmo pedaço de terra, nas mesmas superfícies do globo que, só ao olhar dos viajantes eternos, se vê infinito. Os que não viajam, estão limitados a meia dúzia de metros quadrados e a informação viciada, do diário quotidiano in loco são as vivências, as que se podem ver, se calhar medir, descrever, contar, escrever, analisar, mas o que se não pode fazer é entrar na alma de ninguém e expiar os monólogos constantes, incapazes de apaziguar outras almas, a não ser que se vista a camisola, que se exponha a alma, como uma ferida ou um medo ou uma vergonha a que se quis enfrentar, encostar na parede, perder o controle. Erradicar. Ou que a vida em si, nos mostrou, não sermos capazes de ocultar. Não querermos mais ocultar. O esquecimento da história leva à repetição dos erros. Muitas vidas, lá atrás, no tempo que foi dos outros, dos que vieram antes, dos que construíram e pensaram e viajaram antes de nós, nesses tempos, e nestes de agora, cada vez mais, haverá almas dispostas a se sacrificaram em prole dos outros, que se expuseram em carne viva e que deram origem às atuações mais fabulosas, às histórias mais mirabolantes e às dores mais extenuantes de todas. Os que viveram as guerras na primeira pessoa, contando a versão pessoal da história pessoal puderam vingar-se na arte que nos ficou, para nos revelar que somos todos narradores e observadores de ciclos que se repetem. Os autores asiáticos têm-me surpreendido muito, sobretudo pela capacidade de traduzirem o simples (e que pode haver de simples no sofrimento humano, constante e repetido?), não convocando o ódio, não dando protagonismo à continuação da mesquinhez, nem exacerbando as emoções bélicas para a posteridade. Parece-me que fica latente uma pretensão terapêutica de compreensão do fenómeno, da doença, da guerra, das motivações, para melhor os ultrapassarmos. Que é dizer, progredir, nesse entendimento do ser humano.
Quando li o Doce Tóquio, li como se estivesse a beber um copo de sumo natural para uma tarde de verão quente, e, no entanto, Durian Sukegawa expôs o sofrimento, a vergonha, o medo e o estigma da doença de Hansen, enquanto se cozinhava dorayaki, um doce de alma e coração, acrescentando um grande apontamento, desafiador, porque limitou e continua a limitar os que vivem com o bacilo, e muito embora já se não morra da doença, pode ainda, brincando com palavras sérias, morrer-se da sua cura. E se abordamos a vida, pelo ponto de vista da questão, que viemos nós aqui fazer? podemos sempre ficar surpresos pela multidão de seres que tende a oferecer a si mesmo e aos outros a mesma resposta: Nós viemos para ser úteis ao mundo (e o mundo são sempre os outros, que mais há, depois desses outros, ou, sem esses outros, que são as pessoas?) e, baseando-me na resposta mais comum do que se julga, acredito, que nem todos a vi(e)mos viver da mesma forma, e, nem servir aos outros com o sentido de servidão. Que há-de haver dois, e perdoe-se a redundância do verbo de existir, mas servirá a desculpa para diferenciar o tipo de servidão positiva e o tipo de servidão egocêntrica. As guerras são a servidão pejorativa e consequencial de não encontrarmos forma de contornar o que as motiva, que parece continuar a crescer, mais do que árvores na terra, mais do que água salgada nos oceanos. E vai curvando o perfil dos seres humanos, como para nos confirmar da sua inutilidade para a evolução da humanidade, na sua generalidade e componente histórica de progresso.
Socialmente, já nos tornamos mais exigentes, ou paradoxais? Os holocaustos sucedem-se no tempo, distribuídos por nações contra nações, vizinhos, contra vizinhos, irmãos contra irmãos, e parecem querer ser esquecidos, ao invés de serem lembrados, ocultados debaixo do tapete da memória, não nos servindo de lição para evitar novo erro, como não faz caso disso Nanjing (das forças militares japonesas na China, os últimos sobreviventes morrem, pedindo para que as gerações mais jovens não esqueçam a lição). A vida é repleta delas, guerras privadas e guerras públicas, onde inocentes pagam pelo erro de menos inocentes. E se Durian Sukegawa, japonês, propõe a análise da doença de Hansen como um poema do qual podemos retirar dorayakis e Tokues e Wakanas, Han Kang, sul coreana, consegue transformar a narrativa histórica das chacinas de Jeju, do comunismo, como as que o franquismo, o stalinismo e os muitos ismos produziram, através de uma fórmula semelhante, não dando voz à ira, à continuidade das idolatrias nacionalistas, de aldeias inteiras, ao descrever a simplicidade da paisagem, ao pormenor da neve no contraste "cortante", à prova de uma dor que não expira, do trauma, da serra debaixo do colchão, pós fim da segunda guerra mundial, onde, mais uma vez, a influência americana se fez presente da pior maneira, e é, no entanto, expondo o acontecido, que a autora constrói a narrativa, dando voz à mãe enquanto testemunha traumatizada, de uma experiência que testa os nossos limites humanos, resignificando as atrocidades, para que não caiam no ápice do esquecimento, que a fugacidade do tempo produz.
A dor, que tem sido uma herança geracional e cíclica, ainda vai atingir um patamar de utilidade, na sanação. Se permitirmos. Na história das mentalidades, cumprirá a sua função que é plutoniana. Transformar a dor numa reminiscência pode levar-nos, enquanto espécie, a um de dois lugares: Ou ao progresso mental, sociológico e individual do coletivo, abolindo a lágrima, eliminando emoções negativas, ou, ao vazio mais temido dos abismos, viver em guerra, num eterno looping, sem reparação definitiva dos danos que se repetirão ciclicamente, abordando o esquecimento, enfatizando a incapacidade de ultrapassarmos, enquanto humanos, os limites que nos colocamos, para além de viver a vida, somente existindo.
Destas três narrativas asiáticas, onde incluo este poema-vídeo, de Ni Wen, de sofrimento, de crueldade e de grande desumanidade, andam, a par da denúncia das dores, uma beleza impar, este desaguar em serenidade, sempre presente, e eu digo que a violência corrói-nos, mas a forma de a vivenciar desemboca num desenlace cultural, e a forma de compreendê-la, do que podemos fazer com ela, para que não tolha o futuro, que a história deve ser escrita com fidelidade, sem acicatar ódios que só promovem a continuidade de emoções negativas, que alimentam os grandes países produtores de armas, que continuam a ganhar com a dor alheia. Não são esses grandes produtores da guerra, parte do grupo humano? Nem todos vemos na vida uma forma de sermos úteis ao todo, alguns de nós vê a utilidade do todo para si próprio, e estes não são a regra, mas antes a exceção, felizmente. Que expire a sonolência, o medo, a inconsciência e a frivolidade e o populismo que nos colocam ao grosso dos humanos em estados de desesperança e que se dê um grande pulo para o poder pessoal de cada um, de modo a sabermos defender e melhor escolher que tipo de vida viver, onde a dor não conste como impositiva, mas antes como um fator histórico pertencente ao passado, no que diz respeito ao sofrimento da maioria. E se a empatia e a crescente compaixão acordar ou crescer no meio das multidões, as minhas preces terão sido ouvidas. O mundo pode e deve ser pacífico.
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