Os arcanos do Julgamento e da Estrela

 


Sentada, na bancada de madeira escura e larga, olhava aquela figura de autoridade, como se houvera sido um velho professor que nunca tive. Que a minha professora era de fazer política na sala de aula. Sentava as crianças no colo dela, logo após o vinte e cinco de abril e perguntava: de que partido és, meu filho? Era uma pergunta de retórica, porque todos estavam instruídos a dizer o mesmo. Os presentes ou recompensas vinham revestidos de pirolitos ou de santinhos. Na parede, por cima da loisa, a figura de Jesus Cristo na cruz. Em cima da sua secretária, alguns livros desordenados e uma grossa palmatória, com furos arredondados nas extremidades e no meio. A dita cuja era uma figura carpida do estado novo que, após o vinte e cinco abril, se havia radicalizado na direita e ela era de extremos. Os seus extremos eram sempre temperados, na ausência da sala de aula por longos períodos, me colocando a mim de "professora assistente e repressora" (tendo de colocar os nomes dos meus colegas que se portassem mal ou dessem erros nos ditados, escritos no quadro), e na crueldade e humilhação dos alunos que tinham mais dificuldade em aprender ou que não fossem "dobráveis" às suas questões políticas. E a criança que fosse, se não lhe dissesse o que ela pretendia ouvir, era punida. Esta é a analogia que faço com o que tenho na minha frente.

Naquela bancada, queriam que explicasse o sexo dos anjos e eu dispus-me a fazê-lo da forma que sabia, sabendo, e perdoe-se esta redundância, a minha explicação não ia caber no padrão daquela figura de autoridade e nem eu estava disposta a voltar ao tempo em que a palmatória ameaçadora rasgava as peles finas das mãos frias dos meus colegas e minhas, para que a dita senhora, com os seus extremos de desumanidade, nos recompensasse ou nos agredisse. Eu ia explicar a minha versão. Não aceitava mais colonizações de ninguém. O meu ídolo era aquele Cristo sem cruz, que eu aprendi a substituir, com o tempo que passou por mim, a paisagens naturais de montanhas encimadas por um cavalo ou pelo sol poente. Por uma ave que, aligeirava o voo e dava voltas sobre si mesma, antes de poisar na copa de um castanheiro, dos rebentos de flor da primavera, nos ramos ainda molhados e tolhidos pelas intempéries do inverno. Pelas imensas fotografias que tinha do meu pai, tão jovem, tivera que partir para o céu, em missão. E os meus ídolos continuavam a ser inspirados pela verdade, pela música e outras artes, pelas pessoas que eu sabia serem humanas e inteligentes, sem pretensões de serem mais ou menos que ninguém. Focava-me nessas imagens para, em monólogos, agradecer a Deus, ao meu Cristo, a vida e os processos que corriam dela mesma para mim, umas vezes como recompensas e outras como lições. Nunca fui cábula. Nem marrona. Tinha era uma enorme sede de saber cuja saciação procurava satisfazer-se, na maioria das vezes, sozinha, em descobertas próprias. Porque às minhas perguntas, as respostas eram evasivas ou o mais que conhecido: porque sim! porque não! Ou ainda, porque eu digo! E isso deixava-me frustrada, a mim e aos meninos que eu tinha a responsabilidade de guardar.

Nesse banco largo e escuro, onde, certamente, caberiam mais cinco iguais a mim, eu olhava o meu interlocutor com uma distância de dois metros e, entendia a in verosimilidade dele aceitar o que lhe dissesse, pressupondo a sua provável expectativa enviesada, já cheia de factos que simulavam a verdade dos outros, habituados que estavam, através da sua autoridade e do abuso que muitos faziam dela, como se viessem de uma camada da estratosfera, sabichões e prepotentes e quisessem impor a sua forma de ver as coisas, e julgar, com alguma leviandade, os que não iam por ali. Eu pertencia a essa classe, à classe do Régio, a esse cântico negro que sempre me assombrava e me arrepiava. Mas eu era só uma. E bastaria, dissesse o que dissesse, para não atrapalhar a imagem que eles tinham criado de um qualquer judas onde eu mesma poderia caber. Só que eu não era Judas. Era uma mulher. Naquele banco eu era três e ninguém mais os via, a não ser eu, dois anjos, um de cada lado do meu corpo e nem eu era deste tamanho. Era uma menina, um pouco mais alta que os anjos, mais velha seria dizer que as crianças envelhecem, porque hão-de concordar comigo, as crianças, enquanto são crianças, e devido ao seu espírito livre e sagaz, não sabem envelhecer. Esse desmérito cabia às pessoas com presunções menos elevadas sobre a vida, que continuavam a ver o mesmo Cristo naquela cruz e o meu Cristo que era vivo e alegre, que fazia nascer borboletas e perfumava as flores à nossa volta, não nos permitia ganhar a patine do conformismo dos anos. Nem nos acomodarmos às versões irreais e abstratas dos adultos autoritários. E às crianças, digam o que disserem, tudo lhes era permitido. Ou devia. E ali estava eu, mulher adulta, mas foi a menina interna que pediu para se expressar. E eu permiti, porque, também com o caminhar de tempo, a amaciar-me as expressões de tolerância e, a rasgar-me sulcos na pele, me sentia no direito de dar liberdade à criança a que nunca ninguém ouviu ou quis ouvir falar. E falei por três. Que foi sempre a conta que Deus, em mim, fez. 

-Meritíssimo, ocorre-me dizer, em abono da verdade que carrego, que sou uma mulher de aparência, mas mantenho o meu espírito infantil. Deveria dizer puro. Mas não o podia fazer. Porque não? Eu passo a explicar e é muito simples: A pureza é algo original e inato, mas pode ser conspurcado através da crueldade e demais desumanidades a que somos sujeitos. Mantenho-me, contudo, fiel, apesar de todas essas tropelias engendradas pelas mentes mais desumanas. Sou humana e assim mereço ser tratada. Sem ofensas e nem diligências encomendadas. O sol brilha para todos. E cabe-me a mim defender-me. Sou acusada de variadíssimas coisas. Entre as quais, ser otária. E isto, traduzido socialmente, nos meios em que me movo, só quer dizer disponível, voluntariosa para auxiliar a todos, conhecidos ou estranhos, de entrega total e não parcial, sou assim. Mas não sou a Gabriela. Essa personagem que não mudava; sapatos não, sr. Nacib. Eu mudei. Cresci. A minha criança é que não, mantém-se a correr nos prados, quando lhe dou corda. Não gosto de repressões, e aprendi da minha mãe a permissividade. E com o passar do tempo, os perigos que ela comporta. E ainda fui mais fundo, saber porque ela acontece, de que forma chega, porque fica ou porque danifica e o que danifica, nos julgamentos e apreciações que somos "obrigados" a fazer no decorrer das imensas experiências, que isto de viver é tudo a título experimental. Sou adulta desde os seis anos. Porque é essa conta que faço, quando se tem que cuidar de crianças menores, quando a nossa brincadeira e descoberta tão própria da nossa puerilidade, dos verdes anos, da infância, eu na infância, tive que crescer, assim com um peso de duas crianças que não eram minhas. Ora, isso, levou-me a estudar melhor o universo infantil ao qual eu tinha restrições coniventes com ser-se "mãe" aos sete anos, de dois irmãos rebeldes e infantis, de rosetas no rosto, de alegria e de cansaço nos olhos, pelo entardecer. E não foi só isso que aprendi, meritíssimo. Ainda fui mais longe, até sem querer e acrescento o sem crer, porque também tive que observar nesse estudo todas as condicionantes e amostras de adultos que circulavam à nossa volta, supostamente, encarregados de cuidar de nós, mas aos quais faltava o peso do amor e da responsabilidade e sobrava a vontade adolescente de viverem as suas próprias vidas. Faziam o menos possível, para justificar o todo. Foi assim que aprendi a conhecer as sombras e a luz que carregamos. Muito jovem, ainda. Ficar chocada foi o máximo que conseguiram de mim. Nunca baixei os braços e nunca desisti da busca pelo entendimento nos relacionamentos sociais humanos. A meu favor, tenho a dizer que estou cansada de ser um joguete nas mãos, na vontade e no parecer dos que, tendo a "obrigação moral" de me conhecerem, por terem convivido comigo e beneficiado da minha amizade sincera, me desconhecem por completo. E se em tempos, isso me entristeceu, se por temporadas isso até me abalou, também foi força que me acrescentou. Ainda assim, meritíssimo, não me venceu, nem o rancor, menos ainda o ódio. A raiva ou o destempero sempre ocorreram no momento certo. Quando necessitei defender-nos, assim o fiz. Nunca ninguém me disse: és a mais velha (com sete anos não se é velha), eu é que sentia dentro de mim o apelo de ser a responsável por esses filhos que a minha mãe não podia cuidar, por trabalhar muito, assegurando-se que nada nos faltaria.

E faltou-nos tanto, meritíssimo, que do nada se faz tudo. O mais precioso e necessário não tivemos. Pais presentes. Apoio e segurança. Amor e cuidado constante. E temos que homenagear a mãe que lutou da forma que sabia, que nunca acreditou nos ter deixado ao cuidado de nós mesmos, pagando muitas temporadas e ocasiões a diversas empregadas internas que deveriam zelar por nós. Umas assim o tentaram fazer e outras nem por isso. Mas ganhava-lhes a vida própria, os namoros próprios da idade, as diversões tão chamativas de quem só encontrava liberdade na permissividade da minha própria mãe. 

Os julgamentos externos advêm, na sua maioria da ignorância propagada, baseada em sombras projetadas por sujeitos infelizes e frustrados, também eles desajustados, procurando uma desculpa plausível para a crueldade interna que carregam, para a inveja disforme que lhes sobeja na face, para a não aceitação de não mais serem protagonistas da vida alheia. Nada devo, a não ser a Deus, nada temo, a não ser ao amor grandioso que, por vezes, ameaça despencar-me em cima, da compaixão que sinto pelos injustiçados e desamados, em primeiro lugar, pela empatia progressiva de conhecimento das sombras, do estudo das mentes que desconhecem e negam qualquer crédito à essência e baseiam a sua vivência nas aparências do visível. Em segundo, aos inimigos, porque hoje entendo que as suas próprias debilidades os inferiorizavam quando eu os tratava bem e eles me destratavam pelas costas. E isso, a minha criança já tomou conta, perdoou a todos, entendeu tudo o que vem nas entrelinhas de quem sou e o que me separa deles. E primeiro, a criança em mim, que é mais feliz que a mulher que sou e bem mais sábia me disse: Estás pronta! Porque soubeste gerir a compaixão, aplicando-a primeiro a ti. Perdoar-te pelos erros e pelas avaliações aligeiradas do que te rodeava. Cresceste. Mas a mim, deixa-me continuar a ser pura e a ter asas para voar.

-Meritíssimo, não permito a ninguém a colonização do meu eu, a castração da minha vontade própria, nem a entrega da minha identidade, a que vim exercer. Nunca cometi qualquer crime que afrontasse o outro, que diminuísse ou impedisse a sua expressão de liberdade. O mesmo exijo para mim. O que dei aos outros. O que ainda dou, de entender os seus erros e presunções, o de empatizar com os seus dilemas e retrocessos. Porém, a minha criança há-de viver eternamente, doa a quem doer. E da minha verdade só eu sei. Os anjos não têm sexo, meritíssimo, os anjos descem e sobem consoante as vibrações. Umas vezes, vindo auxiliar e outras vindo repor as energias baixas. Os anjos habitam nos céus da alma de cada um e partilham a sabedoria a quem sabe escutar o coração. O meu coração é um canal para o infinito do amor, da liberdade e do perdão. Ninguém me pode resgatar a essência. 


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