Os hábitos avessos à consciência ética

 




Olhei-me uma última vez ao espelho, antes de vestir o paletó cinza. O colarinho da minha camisa branca denunciava a gastura do meu pescoço, o hábito de, invariavelmente, ter sido sempre aquela camisa branca, a testemunha dos meus maiores atos sociais, fossem eles de compromisso legal ou fé. 

O meu bigode branco aparado. Sem barriga. Aprendi a cuidar de mim, dentro deste internato, onde os últimos quatro anos e meio, me tem aguentado as vicissitudes da vida, dos meus erros, as têmporas que, quando os calores se me dão, pela impotência ou pela restrição, as encosto à meia dúzia de azulejos brancos hospitalares, por cima do lavatório no meu quarto. 

A Hermínia estará lá fora, à minha espera, amanhã. No fim disto tudo, sentirei falta destas paredes e até deste espelho baço que miro amiúde. 

Volto ao pente fino, escovo o bigode estreito e reto. E volto a passar os dedos pelo meu cabelo curto e branco. Sinto-me mais próximo do fim. E a minha voz interior grita-me que abra a porta e me lance nas últimas horas, para a derradeira liberdade. Pego no paletó. Em mim, vivem agora imagens soltas e antagónicas. Porque parte de mim quer o exílio. A outra parte, não. E se me perco nestas matutações, creio que me irei atrasar para os compromissos que sempre fiz questão de cumprir. 

Saio e fecho a porta do quarto, mas algo em mim continua a deambular em imagens e pensamentos, entre situações do passado e o meu presente de aprendizagens constantes. Desço o lance das três escadas, devagar, no fim das quais, vejo o agente Martins e o agente Fonseca. Cumprimento-os, oiço-os falar comigo, mas a mensagem não chega. Querem me alegrar, mas dentro de mim, a alegria anda de pausa há mais de um mês. Tudo me chega devagar, como se a própria vida e os seus ensinamentos me agredissem com a pressa dos relógios todos. Aceno que sim, aos seus disparates. São meus amigos. Eu sei que sim. Habituei-me, desde que ali estou, a ver todos como mestres, e a minha humildade também se habituou a mim. Meço o dia pela luz que entra do corredor. Devem estar a ser quatorze e trinta. A audiência foi marcada para as quinze. Em pouco menos de meia hora, estarei em frente do desfecho desta página da minha vida que, por bom comportamento, termina antes do tempo de pena previsto. Olho o meu relógio de pulso e arranjo, mais uma vez, o cabelo. Sinto a veia pulsar-me entre o seio nasal e o pescoço. Entro na carrinha que me aguarda cá fora. Um dos guardas é o Ulisses e o outro sujeito que é o motorista, será um outro alguém que desconheço. Tive tempo para conhecer a instituição, os seus funcionários, os hábitos, o sistema e quem operava por detrás dele. 

Desde que saí da audiência, onde assinei o meu nome, consciente dos meus atos e deveres, da minha concordância, face às minhas responsabilidades sociais, aos olhos de quem me olhava, fiz-me um homem novo. E eu vejo-me obrigado a concordar com tal avaliação. Eu sou esse homem novo, diferente do que entrou ali a 17 de Novembro de mil novecentos e oitenta e um. A correr bem, sairia na década de noventa. Estava tudo certo. Teria que cumprir uma pena de oito anos, agravada, pela aceitação de suborno, pela prática ilegal de compra e venda de cabeças de gado e lenocínio. Só um desses crimes se comprovou. A Hermínia sabia de quase tudo. Não sabia do que, em mim, seria mais grave, que incorria no risco de perder a sua fidelidade de esposa e amiga. Contei-lhe toda a verdade, dois meses após me ter apresentado na cadeia, a que à data de hoje, ainda chamo de faculdade. 

Comunico através do advogado que quero que me venham buscar no meu carro. No dia seguinte, pelas nove horas da manhã, o Jerónimo, a Dulce e a Hermínia me aguardarão no átrio, verei o meu velho carro, poderei conduzir novamente. Mas enquanto não chegam as nove horas, e enquanto organizo os meus poucos e valiosos bens dispostos sobre a cama, vou me zurzindo pelo peso que será me ver livre, novamente, enfrentar a todos os que souberam que tinha sido condenado e privado à minha liberdade e pouco sizo, na altura. Uma ambição desmedida. Aos meus pais, não pudera imputar a culpa, era o que mais havia de faltar. Tivera uma infância modesta, mas a inteligência, tinha-a herdado da minha mãe. Tinha cumprido a minha pena. Porém, a vergonha que tinha feito sentir a minha esposa, aos meus filhos, não a poderia retirar dos rostos e menos ainda dos seus corações. Nunca recebi nenhum julgamento da parte dos filhos e dela, da minha Hermínia, a única pergunta, tinha sido: Mas porquê, Simão?

Se já era devoto da Nossa Senhora de Fátima, tornei-me mais devoto ainda a Cristo, ao senhor Jesus Cristo a quem tinha recorrido várias vezes, durante aqueles anos ali passados. A seguir à audiência, fui despedir-me dos que não veria no dia seguinte, pela hora das refeições, todos me abraçaram, todos me desejaram boa sorte, que para sair daquele sítio e retornar à sociedade era preciso muito boa sorte. Concordei e agradeci. Não me sentia preparado para abandonar a solidão a que me tinham convertido. Passara a gostar dela, a precisar dela. Encontrava paz nela. Tinha conversado sobre este assunto, imensas vezes, com o capelão que nos visitava. Que se tornara outro mestre para mim. Olhei os livros, a bíblia, cheia de retratos, dos meus filhos, de dois netos que eram bebés quando fui detido. Recolhi os mesmos livros, para dentro do saco castanho que a Dulce me trouxera, retirando antes as fotos, guardando-as no meu paletó, dentro da carteira. Empilhei as minhas camisolas gastas, o roupão e os pijamas. A roupa interior, os sapatos e os chinelos de quarto, deixando de fora, apenas, a roupa escolhida para, depois do meu banho diário, que havia sido eleito como o dia da minha liberdade social. As calças azul-marinho e paletó da mesma cor. Uma camisa bege e a gravata, azul cinza, que tinha sido oferta da Hermínia, aquando do casamento do meu filho mais velho. Os sapatos estavam polidos. Despedira-me do barbeiro e do enfermeiro. De todos que tinham sido a minha família, nestes últimos anos de vida. Coloquei o saco dos livros na cadeira, o estojo de higiene, com os meus cremes pessoais, deixei-o no lavatório. Deixei a colónia em cima da mesinha que me servia de cómoda e também de secretária. Que aquela seria a última vez que usava aquela colónia, ia deixá-la para ser entregue ao Mendes que era outro guarda como eu, que fora preso antes de mim, por outros motivos mais danosos que os meus. E ainda continuaria a cumprir a sua pena. Para minha pena que tinha aprendido a compreender e a gostar de aquele ser humano do Norte, da terra dos meus avós. 

Não havia, como motivo único deste pesar, o receio, não era somente a vergonha de encarar parentes e outros entes. Eram vários pontos que se uniam e cresciam por dentro. Deixar os amigos que fizera ali, onde havia sido bem tratado e onde havia tratado toda a gente com educação e gentileza. E humildade, que ali se aprendia a humildade. Era, também, abandonar a minha solidão e, sobretudo, os hábitos. Eu era um homem de hábitos e rotinas. E quando me atrasava para algum daqueles hábitos, podia dar por conta no relógio de pulso que se atrasava ou adiantava dois minutos, se a minha paz mental se visse perturbada. 

Claro que imaginava chegar à minha casa, voltar a ver a disposição dos móveis, do que me lembrava, revisitar os meus cadernos e todas as minhas besuntas de mundo que lá escrevia. Até isso havia sido revirado, aquando da minha detenção.

O meu advogado, homem da confiança do meu falecido pai, tinha-me instruído com paixão e esmero: Inocente significa da presunção da inocência. A culpa borra os papéis do arguido e a alma da sua família. Compreende Fermentelos?

A culpa pesava-me e ele sabia-o. Há quem a carregue de ânimo leve, como se fosse mais uma segunda-feira, ou uma responsabilidade acrescida que nos vai recriando uma doença ali, outra dor acolá, escamoteando uma sombra aqui e outra acolá. O doutor das ingerências frisava: Oh homem, você é inocente, pela alma do seu pai, Fermentelos, que Deus o tenha! E eu agarrava-lhe nas mãos, enquanto ele debitava o meu discurso favorito e repetia-lhe, doutor você é um santo! E quando me fala do meu pai, é como se o próprio Jesus Cristo me tocasse e me abençoasse por dentro! E enquanto me dava um abraço de piedade e de distância, voltava a repetir, de braços erguidos e olhar perpassando o teto daquele quarto, digno de um óscar cinematográfico, Fermentelos, o teu filho é inocente, tem os teus olhos que nunca souberam mentir!

Na verdade, eu tinha mesmo os olhos do meu pai, e a devoção à nossa senhora de Fátima, mas o feitio, a esperteza e a ligeireza mental era da minha mãezinha, que Deus a tenha em eterno descanso. Um homem é o que for, mas sem pai e mãe é muito mais homem, por já não poder ser menino. Nessa falta que nunca tinha ultrapassado, me dedicara naqueles quatro longos anos a procurar por eles no escuro, no silêncio, deixando sempre a porta dos vivos entreaberta para os meus falecidos pais. Ansiava por respostas, tal a sede de entendimento do que era a vida e a continuação dela. E tivera pesadelos, tantos, que só o Mendes os poderia repetir, quem acreditaria nele ou nos pesadelos dele, quem quereria dispensar tempo a um homem amargo e conformado pela sua desgraça? Descreviam-no como um homem taciturno. Não comigo. O Mendes compreendia-me, tanto quanto eu compreendia a razão do seu crime e clausura. E, portanto, o que eu mais temia era ver-me mais só na sociedade, do que ali, naquele casulo onde me ungia de paz e de simplicidade, da minha cama pequena, da minha mesinha onde se apinhavam, junto com os livros e os cadernos, as minhas visões de futuro e os erros de percurso. Onde os meus lençóis eram mudados diariamente, o meu cabelo e bigode aparados pelo barbeiro privado, a comida sempre gostosa e saudável, sim, ali preocupavam-se com a nossa dieta. Fazíamos exercício físico. Podíamos ir à missa, ler, jogar ou estar sós, caminhando no pátio que tinha meia dúzia de árvores e uns quilómetros de arame farpado e um deserto de gente em volta. Aquele local de aprendizagem a que eu chamava faculdade, onde me tinha doutorado em ciências humanas era, também, o meu hotel de luxo, que impedia que os que me queriam mal se aproximassem, afastava os diabos do corpo e do espírito. Era a tudo isso que eu andava a ensaiar dizer adeus. O Mendes sabia-o, a Hermínia suspeitava. 

Abandonei essa forma de vida, já tinha sessenta e três anos. Há sete anos que me vejo livre e rodeado dos filhos e netos. O Mendes morreu na cadeia. Soube-o duas semanas depois, através do doutor, advogado do meu falecido pai. Suicidou-se. Todos os domingos mando rezar uma missa por ele. Todos os domingos, entrego meia dúzia de esmolas gordas ao padre da cidade onde frequento a missa. Resultado das minhas besuntas, das quais não me orgulho. Todos os dias peço perdão a Jesus Cristo e aos meus pais. Peço perdão por mim e por todos os pecadores. Pelo Mendes e pelo advogado. Durante dois anos continuei a ser supervisionado pela polícia. Tinham receio, certamente, que me não adaptasse socialmente e quisesse voltar aos tempos áureos de aprendizagem compulsiva. Como sou um homem de hábitos, depressa aprendi a gostar de ter a Hermínia por perto, a minha Dulce e as meninas, o Jerónimo e o seu filho. Vou-me adaptando à ideia de fim de linha e tenho de manter sempre as conversas em dia, com Deus e Jesus Cristo como testemunhas. Sou um homem novo velho. Novo, porque aceitando as minhas sombras companheiras, alterei a minha forma de ser, velho, porque apesar de todas as minhas vitórias e fracassos, sinto-me mais cansado todos os dias e cada dia que passa, mais pronto para partir. 

A minha terapeuta que se vê ao abrigo da ética profissional aconselha-me a tomar algumas medidas que me diminuam a ansiedade e previnam o bem-estar dos meus descendentes. Faço confiança nela, tal como no padre ou no Mendes. Sei que o que me dizem que não é para me confortar, mas que espelha os seus valores. E que mais pode um homem pedir, senão a verdade, quando dela precisa?

Nos últimos dois anos, concluí os investimentos. Vendi duas propriedades, para pagar os impostos altíssimos de todas as outras que tenho, desde Alvarenga à Moita, desde as Caldas da Rainha a Évora Monte. Na Alpiarça, dou rodas aos calcanhares e debruço-me sobre o poço. Lá no fundo, ainda se encontram cadernos e pacotes de jornal fechados com fios de pesca. No muro da Corredoura, que nem sequer me pertence, mas tenho direito de preferência, outros pacotes se lá guardam. O Mendes calou-se para todo o sempre. Era para ele, se tivesse resistido a toda a solidão que viveu, depois de eu ter saído. Na verdade, como sou um homem de hábitos, mas fraco, nunca mais lá voltei e disse-lho antes de sair. Também lhe disse que aguardava por ele, em casa, enquanto fosse vivo. Ele é que já não é. Quanto à Hermínia, depois do diagnóstico do enfisema e dos tratamentos, decidiu que iria voltar para a terra dos seus familiares. Tinha lá a Albertina, a irmã mais nova. Que estava cansada da humidade e da solidão. Eu abracei-a e compreendi-a e até disse aos filhos e netos que a deixassem em paz. Que a fossem visitar, como eu iria. E assim foi. Deixei três cartas, devidamente endereçadas. A cada um dos filhos e à esposa. 

No final dessa noite quente de verão, já eu tinha completado setenta e dois anos e regressado de Tavira, depois de ter fechado os envelopes na gaveta do escritório, desloquei-me à garagem. Sempre pensei que morrer em Novembro devia ser o meu destino, mas a consciência é mais pesada que qualquer reconciliação com Deus. Peguei na Winchester que pertencia ao meu falecido pai. Carreguei-a. Uma bala de ouro. E estourei os miolos que, ali no chão e com Deus por testemunha, me haviam acabado de fritar, de tão cansado estava dos hábitos, principalmente, este de mentir para me sentir melhor comigo mesmo. As besuntas terminaram ali. A ambição destruíra o homem velho e, mesmo de hábitos, nunca me tinha sentido merecedor da liberdade que alcançara, injustamente. 


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