O domínio na arte da guerra

 





Ontem acordei num pesadelo. Na verdade, acordei para sair dele e saber, justamente, que estava a viver mais um pesadelo. É recorrente. Não nas personagens, exceto os meus olhos, permaneço eu a viver esses momentos que parecem durar uma eternidade. Tento voltar a conciliar o sono, mas precisei de recorrer à música das flautas tibetanas. Voltei a dormir. Não voltei ao local anterior. E se sim, não voltei a acordar e nem a lembrar-me da continuação. Na realidade, este tipo de pesadelos vivo-os desde o início da década de oitenta. Chacinas. Massacres. Prédios destruídos, vultos entre sombras das pedras e dejetos nas ruas, vejo-me a socorrer pessoas, essencialmente, crianças, vejo uma carroçaria de madeira, a parte posterior do que antes acompanhava os cavalos e também os tratores agrícolas. Alguns deles acontecem em meios urbanos, como este último, vilas e cidades destruídas, casas e prédios arrasados. Começaram por ser formas desfocadas, como se fosse uma fotógrafa a colecionar espaços, objetos, a captar luzes e sombras, mas depois, quando vejo que são os meus olhos a tentar focar o que me rodeia, procuro a objetiva entre o nariz e a escuridão da paisagem externa, sempre escura e é quando começo a sentir e a ver o pesadelo de uma realidade assustadora, no plano terrenal. Grupos de pessoas a correr, vejo os braços que passam, e que pela velocidade com que se empurram para a frente e raspam nos arbustos espessos, as vestes, camisas e t-shirts rasgadas e sangue, calças de ganga, pés a correr, ergo-me e existem corpos tombados por todo o lado, quero ver onde estou, mas a destruição parece ser o fator comum em todos eles. Na década de oitenta, o meu terror eram os pseudo-hotéis, as pensões lugares onde as pessoas pernoitavam que, parcialmente, à medida que a noite avançava, a imagem de conforto e de descanso, da paz depois de um dia de estrada, eram substituídos pela claridade em excesso, espaços vazios de grandes extensões, envidraçados, e, paralelamente, através de um ascensor normal, aparentemente normal, descendo ou subindo, ia dar a outro espaço onde a luz era difundida através de propagação e dividida por cortinas de plástico fino e transparente, onde se viam macas e não camas, onde se viam cirurgiões e não funcionários de residenciais, preparando quartos e reservas para hóspedes. 

Em oitenta, os meus pesadelos recorrentes foram quase sempre com tráfico de órgãos. Lembro-me de ter marcado em Águeda, aquando de um espetáculo, dormida para dois adultos e o meu filho ficava no nosso meio. Na realidade, aquela marcação fora feita, para que, ao contrário da banda, fôssemos dormir a uma aldeia, para o outro lado, longe de Águeda. Cheguei a ligar para confirmar e não havia marcação, alguém se esquecera de apontar no livro e não havia quartos disponíveis. Depois daquelas horas, de desmontar aparelhagens, dobrar cabos, estabelecer e organizar metas e agendas, a solução encontrada era viajar até que o cansaço fosse impossível de adiar. Parar duas ou três horas, num ponto de gasolina, na beira de uma estrada. E assim foi, em três horas e meia, estávamos na cidade pretendida e ainda havia uma pensão familiar no centro da vila, onde pudemos pernoitar e acordar para um pequeno-almoço tardio, na confeitaria mais próxima. Num dia quente. 

No pesadelo, nunca saímos de Águeda, porque depois do quarto supostamente agradável, acolhedor, embora pequeno e com uma janela diminuta, dava-te uma dor repentina, eu descia as escadas alcatifadas até ao rés-do chão para pedir uma ambulância e um casal acompanhava-me sem alarmes, pedindo-me paciência e calma, e abria uma porta pequena ao lado do quarto, de onde retiravam uma maca, onde colocavam o teu corpo contorcido pela dor, os teus olhos inchados não abriam mas o risco que fazias na testa estava lá denunciando que as dores se mantinham. O casal competente e frio era substituído, quando os voltava a olhar por uma mulher com uns óculos garrafais e um senhor que, pela ausência de cor, se assemelhava a um fantasma. Enquanto eu segurava o nosso filho, as suas pernas abertas nos meus quadris e pegava na bolsa para seguir a maca, era empurrada para o chão com o menino no colo, a porta era trancada. O suor rompia-me pela testa, pelos cabelos, pela barriga, o menino segurava o action man nas mãos, sentado na beira da cama e eu, com uma espécie de calçadeira, que tinha partido, tentava romper a fechadura e de repente, a porta abria-se, e eu com ele no colo, começava a correr, e via o corredor envidraçado de onde penetrava a luz exterior de um azul-claro, nada conivente com a noite, depois via a tua maca a ser empurrada e continuava a não querer me denunciar aos que a conduziam, com receio que nos voltassem a fechar. Esperava que o ascensor descesse e ia dar com aquele espaço enorme, do tamanho de um campo de futebol, que só era visível, em espaços divididos pelas tais cortinas transparentes onde as rodas das macas eram metalizadas e rolavam por um piso sem barulho, ouvia-se as rodas riscarem o chão como um assobio de pássaro ao longe e, enquanto eu colocava o dedo entre os lábios ao menino para que não fizesse ruído, os dois encostados no chão, separavam-nos de ti um cortinado transparente com dois homens vestidos do mesmo azul que entrava pelos corredores imensos onde tínhamos caminhado. Quando eles saíam do espaço daquele cortinado, eu agarrava a mão do menino e pegava nele ao colo, para que te pudéssemos ver e falar. E era o teu rosto, a dormir que víamos, com um lençol branco até ao peito. Os braços cobertos. Chamava-te baixinho, pedindo a Deus que me ouvisses. De repente, abrias os olhos e dizias-me que te tinham retirado o apêndice. Mas aquilo era um hotel ou um hospital? Era na fachada um hotel, na traseira uma clínica de tráfico de órgãos. E antes do pesadelo terminar, teríamos a confirmação que aquela dor que tiveste, era a dor que teriam todos os que lá pernoitassem, se bebessem água facilitada pelas instalações. Que provocaria a dor. Que levaria os hóspedes a transformarem-se em pacientes voluntários e camuflados, doando órgãos para hospitais e clínicas privadas para que os ricos e poderosos pudessem continuar a viver com saúde, diminuindo a saúde de outros tantos.

Quando os pesadelos passaram a ter a guerra e a violência, nunca entravas neles, eu estava sempre a tentar salvar a minha vida, nenhum dos meus filhos estava comigo, mas vi muitas crianças e adultos perderem a vida, lutando contra a barbárie e acidentes naturais de grandes proporções. 

Antes deste pesadelo, da barbárie, das violações, dos fuzilamentos e todo o tipo de selvajaria, foi com mulheres e crianças na América Latina. Cabelos arrancados, como escalpes, com gestos rápidos e violentos, corpos arrastados pelas madeiras, carregadas de lascas e cabeças de pregos que entravam nas carnes e lhes abriam buracos de onde o sangue jorrava. Portas de madeira que batiam pelo vento, em dias que poderiam ser bonitos, de um céu azul e um mar imenso, de ondas baixas e línguas de espuma assertivas, onde homens suados e vestindo calções e calças arregaçadas até aos joelhos golpeavam meninos, muitas vezes depois de terem feito o mesmo às suas mães. Crianças onde o suor se misturava com o sangue e a dor, e eu olhava melhor e depois, no continuar do sonho, perguntava-me como seria crescer e conviver com as imagens recorrentes de toda a violência vivida. Se saberiam sorrir, como sorririam, se algum dia encontrariam a paz suficiente para virar uma esquina sem olhar para trás, se quando se banhavam no mar ou quando se deitavam para dormir, conseguiam esquecer os dias e noites de terror. Como se esquece a violência? Poderá adormecer, quando os eventos mudam drasticamente e depois, num estado permanente, ficando na latência de um sinal que possa prognosticar novo desespero? Conseguiriam relaxar e acreditar que aqueles dias não voltariam? Via-me durante o dia a correr com outras pessoas como eu, sem sangue e sem escoriações no corpo, mas ensopada de suor e de cansaço, rasgando pedaços de tecido, roupas presas nos fios juntos a cabanas de madeira, as casas improvisadas de quem só pode viver um dia de cada vez, e tentava, com esses fiapos de tecido, estancar mais um gotejamento, mais uma ferida, depois de lhe passar água do mar. 

Este último, que me fez recorrer às flautas tibetanas para voltar a dormir, e que me parecia ser mais duradouro que todos os outros, que revelava pormenores e palavras que funcionavam como chaves que abriam mistérios, como se pudessem prender todas as armas e facões usados, todos os homens sem qualquer pingo de humanidade, numa mesma sala que precisaria ser do tamanho de um campo de futebol, mas era do tamanho das montanhas que eu decorei na frente daquele casebre, para todas as atrocidades e todos os terroristas que já tinha visto nos pesadelos. Um homem de cabelos lisos pelos ombros, um enorme bigode escuro e espesso lançava um grito que amedrontava todos. Creio que mesmo os próprios que caminhavam com ele e praticavam as mesmas maldades, todos o temiam. Uns olhos verdes, frios, uma pele muito queimada pelo sol. Uma camisa vermelha da cor do sangue que contaminava todas as paisagens por onde passava. Um facão que lhe brilhava na cintura, num cinto de corda que estava atado sobre as calças arregaçadas até aos joelhos, descalço e bárbaro. Trocava pessoas por frutos. Fazia trocas comerciais de sexo e alimentos por pessoas. Havia muitas crianças que se tornaram adultos à lei da força, meninas que se prostituíam para não morrerem e, ainda assim, viam a morte ao seu lado, feia e ingrata, repentina e sem dó de ninguém. 

Mantenho-me em meditação por dez, quinze minutos, ao fim dos quais, ergo-me de novo, para me refrescar de água e busco o caderno e a esferográfica que são o meu amante, o que dorme na almofada ao meu lado. E desenho um búzio, ao fundo do horizonte, um mar, um rochedo na entrada e um falcão sobre ele.

Querem tramar-me com a casa e o terreno. Montam-me uma emboscada, mas eu já sabia disso. Não estão preocupados com a saúde da minha mãe, nem com a minha. Querem roubar-nos os sonhos, a casa, a saúde e o sorriso. Arquitetam planos e manhas. Querem-nos paralisar. E não obedeço ao desejo deles. Porque o poder de escolher é meu. O falcão mantém-se no rochedo sem voar. Escrevo um nome, risco, escrevo outro. Obedeço agora ao movimento instintivo dos meus dedos e estão escritos lado a lado sete nomes. Sendo que quatro se encontram do lado do rochedo encimado pelo peregrino de cabeça escura. E do outro lado, mais três nomes. Coloco uma data por debaixo e a minha mão continua a escrever. Nova data. Uma data para cada lista. Uma estratégia e alguns riscos, como aqueles que se desenham no jogo da sueca. E desenho espadas nas listas. E ao fim, já na praia, vejo as minhas costas a quererem erguer-se para uma sombra que se projeta acima da minha cabeça. Não há rochedos andantes. E de mansinho, a mancha cresce e sobrepõe-se. Espeto sete paus finos no chão, onde desenhei a praia e olhando o falcão, sinto um golpe no pescoço, três facadas nas costas, duas gargalhas de uma voz familiar e tenebrosa. Deus envia-me um clarão, um raio através do qual, me dirijo para enfrentar os que me querem humilhar de calúnias, mentiras e esquemas horripilantes. E eis que me ergo do chão ao céu, lá em baixo os meus inimigos desferem mais golpes sob um corpo que abandonei. Que foi meu. E a verdade é largada como uma bomba que explodirá no chão onde já não mais me encontro. Estou acima. E os detalhes desmontam toda e qualquer mentira. Resisto e olho os chacais a que dei de comer. São só sombras pobres, moribundas, sem luz própria e capazes de devorar os que carregam a luz. 

A cama volta a suportar o peso do corpo que é ainda meu. A que posso voltar e largar. Poiso o papel com nomes, datas e acontecimentos de previsão, largo a caneta. Ambos sob a almofada lateral. Apago a luz. E acendo a paz, na tocha de Deus no meu peito. E peço em segredo, baixinho, aos anjos que aqui estão que vigiem os meus. Volto a entrar no onírico. Sou um oráculo latente.

Paizinho, vou dormir. 


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