Mário de Carvalho
Currente Calamo
A SEMÂNTICA DAS ATITUDES
Parece-me assistir a um grande festim antropófago, com algazarras, batuques e guizalhadas. O poder patronal instalou-se, organiza a pilhagem, abate as resistências. Solta as ameaças, açula os medos. Esteve anos no cerco, à espera da ocasião. Chegou o total desenfreio. A crise rompeu a brecha em defesas já erodidas e abaladas. Organiza-se o saque dos rendidos. A direita venceu no terreno após ter avassalado os discursos. Ainda imita alguns rituais e maneiras. O futuro chanceler traz, por ora, chapéu alto e rabona. O objectivo final já esteve mais longe. Assoma no horizonte. Fechar o parêntesis aberto em 1974. Tudo pelo patrão, nada contra o patrão.
Como há duzentos anos, nega-se a diferença entre esquerda e direita. Passei toda a vida a ouvir notícias desta indistinção. Ouvi-as na escola primária quando, aos sábados um capitão nos ia edificar, a nós, miúdos. Ouvi-as no liceu, bradadas em vários cambiantes entre saudações nazis, manuais facciosos e aulas de religião ao gosto de quem mandava. Ouvi-as na faculdade e li-as em sebentas eruditas e túrgidas. Ouvi-as talvez aos pides que peroravam nas longas madrugadas da tortura do sono. Voltei a ouvi-las depois de o país ter sido entregue ao concurso de filhos-família, patos-bravos e videirinhos que já trazia a reserva mental de dar cabo da revolução logo que possível.
O terreno foi batido milímetro a milímetro por uma propaganda que cobriu todos os alcances. Desde o programinha de televisão fútil e alegrete ao comentário apessoado e arteiro. Desde o concurso integralmente copiado ao documentário abençoado por remotos serviços secretos. Desde a divulgação de frioleiras endinheiradas à selecção das vozes que opinam de alto. Desde a ablação da Ciência, da Literatura e da Arte, à promoção do obscurantismo e da irracionalidade. O iluminismo inventou a Crítica? Desacredite-se o Iluminismo. Pensar é chato.
Fale alguém com desassombro e é sempre acusado de «demagogia». Procure-se distinguir o Bem do Mal, salta logo a acusação de «maniqueísmo». Operem-se distinções, reservas, hierarquizações, e acode o «mesmismo», boçal e espesso, a nivelar as dunas. Interesse público? Todos querem o interesse público. O bem geral? Todos querem o bem geral. Generosidade? Tão distribuidinha como o bom senso cartesiano. Desinteresse? Há lá alguém mais benemérito que um banqueiro? Mais pundonoroso que um C.E.O? Mais honrado que um especulador?
A opinião imposta é previsível, vocábulo a vocábulo. Nem por isso menos eficaz. Desvaloriza e desmonta tudo o que seja diferente, generoso, elevado, desinteressado ou, até, heróico. Mas a defesa contra o sectarismo semântico implica um mínimo de espírito crítico. Supõe familiaridade com a linguagem, distinção dos matizes, memória histórica, termos de comparação.
Os interesses reinantes têm beneficiado do colapso dos instrumentos críticos. Da miniaturização da linguagem. Da ablação da memória. Da unicidade de critérios. Da tirania das escolhas. Do condicionamento das atitudes. Do emparedamento do gosto.
Qualquer negociante de secos e molhados ou vendedor de electrodomésticos profere impunemente a sua galegada. Desde que seja riquíssimo. Os ricos não se contentam só com o acatamento. Querem servilismo. Exigem veneração. Chão lambido. Têm-no garantido. Meia dúzia de economistas oficiosos – sempre os mesmos – aprestam-se ao culto público de «os Mercados» com o fervor genuflectido duma adoração ao Espírito Santo.
Tenho gente que estimo na chamada «comunicação social». Uns são amigos. Outros, às vezes sem os conhecer, merecem-me respeito e, até, admiração. E nisto conta pouco a posição política. Creio que posso não apenas exceptuá-los, mas chamá-los a mim, ao dizer que uma boa parte da informação redesenha o anúncio da voz do dono. Tem vindo a preparar sistematicamente as consciências para o presente festival do patronato. As opiniões correntes nos jornais são cada vez mais as opiniões dos proprietários e administradores dos jornais. Instruções dadas pelo telefone? Em encontros misteriosos? Nem tanto. Antes o instinto de captação do comprimento de onda. Afinação dos registos. Querença. Qualquer desvio táctico é calculado, como a deriva dos navios ancorados no fundo. Os resultados da propaganda avaliam-se no médio prazo. As contas fazem-se no final do ano. Trata-se de manter o populacho resignado, ou orientar-lhe as efusões para os pontos em que se esfumem.
Tudo são apelos ao conformismo e à submissão, convites à obediência e ao redil. O povo, quando presente é constituído em populaça. A ralé sempre fez o jeito às contra-revoluções. Chegamos a esta maravilha paradoxal de serem os carneiros a eleger os lobos, os coelhos a eleger os furões, os pintos a eleger as raposas, as carpas a votar no lúcio, o melro a votar na cobra.
Com os da ralé pode a ganhuça bem. É travesti-los de consumidores. O consumidor por natureza é dócil. «Para ver já a seguir. Não saia daí». Já o cidadão tende a complicar. É antipático e incómodo. Toma distâncias e faz escolhas. Há que silenciá-lo, ridicularizá-lo ou desacreditá-lo. Como se fez, em tempos, aos «abolicionistas». Como pode uma economia colonial saudável funcionar sem escravos? Coisa de otários.
Propuseram-se cintilantes modelos sociais. Emergiram criaturas desenvoltas, de lábia expedita e olho para o negócio. Onzeneiros e agiotas, azes da tranquibérnia e chatinagem. Abocanharam recursos. Aviltaram as instituições. Tornaram o país inabitável. Foram aduladíssimos.
Alguns confiaram em excesso na proteção mediática, nas virtudes da desregulação, na negligência dos aparelhos democráticos. Uma vez processados, aplicaram narizes redondos de plástico vermelho em todos os magistrados da República Portuguesa e continuam nas mesmas vidas.
A desvalorização do confronto esquerda e direita continuará enquanto a direita tiver mais voz. Mas por pequenos sinais se mostra uma diferença indelével. Num debate, nunca ninguém de esquerda dirá: «vocês não têm o monopólio da generosidade (da sensibilidade, da humanidade, ou da cultura…». Está assente que não precisa de afirmar isso.
Outro sinal diferenciador do interveniente de esquerda é ser ele, por sistema, interrompido pelos locutores, com um, «mas» malcriado ou zeloso. Pelos mesmos que nunca ousam interromper os comerciantes de secos e molhados ou outros patrões, por mais repulsivos que se mostrem.
In Monde Diplomatique –Março - 2012
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