Só pra não dizerem que não falei de frutos

 



Que bem se vive no campo, Matilde. A Lídia Jorge ganhou mais um prémio. Pela Misericórdia que ainda não li, mas gostava.  

Aquele observador/interatuante surgia sempre, e pontualmente, sem marcação, na janela virtual do seu computador. Haviam conversado durante alguns anos, presencialmente, mas tinha que admitir, as conversas longas e produtivas eram essencialmente na distância de um click na janelinha do messenger. Ele na terra ao lado de nuestros hermanos. Eu aqui, na terra que arde mais um escândalo de corrupção. Ele cortou o cabelo, esqueci-me de lho dizer que notei as repas aparadas, o mesmo sorriso franco e a mesma magreza. Olhos verdes-escuros que se alegram e transmutam de cor ao falar da filha ou dos peixes de estimação. Ou da mãe, algures em Castelo branco, ou dos amigos perdidos entre montanhas berberes e a Suíça. E aos amigos falamos tudo. Que quando nasci já sabia o que era sofrimento, dentro do ventre. Isso. Sofrer no ventre. E já cá fora, as feridas todas que vivi lá dentro vieram-me todas à pele. Manifestação de eczema. Acreditavam que nem vingava, juro. Ninguém o diria, se me conhecesse três anos depois de ter nascido. Aos seis meses, dizem que nem bem segurava a coluna, tal as alergias que fazia a leites, tecidos e metais. E sim, a simples colher e garfo nas mãos provocavam-me alergia. O leite. Todos os leites. Não engordava. As feridas agravaram, pois juntei a essas que trazia do ventre materno o da rejeição e do abandono. Chorava de dores e de irritação pelo cobertor que tinha acrílico, só depois os médicos revelaram que não podia ter nada disso, só algodão! Nem seda! Sério. E hoje, gosto tanto de sedas. E rendas, ainda hoje me fazem alergia, algumas. Todas as etiquetas me deixam mossa. Os relógios, os cintos das calças, tudo o que entre em contacto com a pele. Melhorei bastante, mas as feridas mais graves carrego-as ainda. E dei por mim, enquanto trocamos informações, ele da solidão que o assola por vezes e eu das dores e da forma que arranjo de lhes colocar betadine, a pedir-lhe desculpa. Desculpa-me, não te pude atender, andava a apanhar fruta. E não, hoje não choveu. Só por dentro. Lá fora estava até um sol quentinho. Ao televisor, ouvi-o várias vezes, nas habituais pantominas e no descalabro da queda do governo. O RAP vai ter pano pra mangas no domingo! Apanhei diospiros e laranjas, tangerinas, dois figos, a ver se se aguentam secando, se acontecer, vou apanhar os últimos das figueiras para guardar para o Natal. Compotas, nem por isso. Ninguém come. Vender? Nem pensar nisso, o pessoal adora pagar quatro ou cinco euros e comprá-los feitos e distribuídos pelas grandes superfícies. E em jeito de análise, pensei que me compreendo tão bem, que não obstante os erros cometidos, de ter dado mais de mim do que alguma vez na vida recebi, percebo-me e respeito-me nesta grande diferença entre mim e os outros, que os "amigos" são uma coisa de ocasião" e interesses, para os outros, mas que os entendo, entendo-os porque noutra vida, devo ter sido igual, ou porque pela lei da força de circunstâncias, consigo perceber que a humanidade é uma espécie de vírus que está a abandonar os terrestres. Não sabem realmente o que é compaixão, ou empatia ou solidariedade. E continuo a perdoar-me, porque tal como na minha testa, sem que eu soubesse, estaria escrito otária para todos os que se aproveitaram de mim, também percebo, na conversa que tenho com ele que havemos de ser muitos mais iguais. Assim, com a testa suja de nomes que eles se vomitam, falando de nós, com o coração cravado de farpas anónimas, de gente sem carácter e o que não nos mata, torna-nos mais fortes. Em retrospetiva, lembro-me de aos quatro anos, já andava no colégio do Bom Pastor, já sabia ler e escrever, nesse aspeto agradeço ao meu pai, porque ele tudo fez para que eu gostasse de ler e escrever. Desmontava-me, a par com a ansiedade, o meu profundo ânimo, paixão pelo mundo e pelas letras. Com 5 anos, pedi-lhe que me tirasse de lá, daquele antro religioso e provei-lhe porque não era bom pra mim. As freiras puniam as crianças que não rezavam e não faziam o que queriam. Num quarto escuro sem janelas, com o botão da luz por fora, que nos atiravam às vezes aos dois ou três para dentro daquela sala escura e nos fechavam lá dentro por muito tempo. Quem estivesse de castigo nessa sala estava dispensado de ir à capela rezar, até porque, muitas vezes esse castigo era aplicado, precisamente porque não íamos à capela rezar. Mostrei ao meu pai a sala escura e até lhe mostrei onde a madre guardava a tábua pesada com que nos batia a todos no rabo e nas pernas. - Paizinho, sei ler e escrever, não preciso estar parada em casa até ter idade de ir para a escola normal. Posso continuar a ler e a escrever. Tu ajudas-me! 

O meu pai, convencido, levou-me para casa. Disse no colégio que eu iria ser operada à amigdalite severa e iria fazer tratamentos ao reumatismo articular. Parte disso foi verdade. E ajudou-me. As minhas dores podiam ter partido com ele, quando se foi, tinha eu quase sete anos, mas não. Ficaram todas comigo. E diminuíram, porque a maior revelou-se ser a sua partida antecipada. Mas cresceram. Efetivamente. E continuo a compreender-me muito bem. E com 9 anos eu já tinha lido o julgamento de Nuremberga, o germinal, os últimos dias de um condenado, o castelo de Colditz,  e tantos outros, igualmente dramáticos. Aos doze, as dores tinham o peso do globo, afinal, as histórias do coelhinho e da gata borralheira eram o melhor que o mundo tinha. A realidade era bem feia. Eu já conhecia as pessoas nessa altura. Mas como me compreendo, permiti-me o esquecimento, o deslumbramento e o experienciar, dar oportunidades às gentes que conhecemos bem por dentro e por fora. E perceber que nada do que os outros são tem a capacidade de me espantar. Tal como há pessoas como eu, muito menos, há pessoas como os personagens de todos os livros que li, mesmo das historinhas, onde as bruxas más são mesmo más e as boas são como eu, e os dragões podem ser de água e as águias disfarçarem-se de pombas. Com sete anos, muitos adultos me disseram: és a mais velha, tens que tomar conta dos teus irmãos. Eles são muito pequenos. E eram e eu não era grande. E quando perdi o Rui, até achei que podia ser responsabilizada, porque ajudei a cuidar dele e talvez, se tivesse feito mais assim ou mais assado, se tivesse tirado o curso de medicina com a especialidade em cardiologia talvez tivesse salvo o meu irmão, mas com dezasseis anos, o único curso que andava a tirar era o de manter-me viva, com as dores bem mergulhadas, pois eu já sabia que havia gente que ao ver a vulnerabilidade dos outros, se aproveitava para provocar mais umas dores em cima, sem dó nem piedade. 

E dei por mim a sorrir para a janela virtual, não pela troca de dores, como se fosse de galhardetes, que as dores ficam sempre connosco, como se fossem cicatrizes de estimação, mas porque uma dor partilhada é como um pedaço de pão quente, numa noite fria de inverno, sabe sempre melhor entre amigos. E voltei a sorrir para ele. - Somos muitos, rapaz, ainda não sei bem onde anda a nossa tribo espalhada, mas sinto que somos bem mais que dois. E despedi-me e fui estender uma máquina de roupa e afagar os meus cães e gatos e, ao olhar para o céu, junto do portão, onde andava a Minie e a Moony, calhei de ver a vizinha em frente ao meu portão, pendurada na janela e pensei para mim que há coisas que nunca mudam.  E há mudas que nunca coisam. Inch'allá 

E posto isto, pus mais um risco neste disco, como dizia o Herman, e amanhã já é sexta. Ambrósio, tu sabes, apetecia-me algo! 

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