A vida é um jogo para ousados




 A vida era um carrossel. Madalena gostava de carrosséis. Todas as crianças os apreciam. Mas a ilha era pequena demais e a miséria enorme. Filha entre filhos, gostava de saber mais do mundo em redor. Ali, naquele pedaço de terra, o mar cercava todos os horizontes, toldando-os. E os turistas, os estranhos bem vestidos só lhe aumentavam o desejo de conhecer o além território casa. 

A mãe tinha vivido entre expedientes para trazer comida para casa. Limpando aqui, fazendo faxina ali, escritórios e casas de senhores doutores, e ela acompanhava-a sempre que podia. Gostava muito de estar perto dela. Já do pai, a coisa não se passava da mesma forma. Refugiara-se das agruras da vida no álcool, pelo entorpecimento das artérias que se contrapunham, de alguma maneira, às frustrações acumuladas. Sabia que tinha falhado com a esposa, porque era um fraco. E nunca tinha conseguido ultrapassar isso. Colecionara os problemas, porque não tinha conseguido forma de os eliminar. Assim, o progenitor era encontrado nos bares ou acocorado em algum canto, ou até caído numa valeta. Ela sentia terror de ver qualquer bêbedo, trocando as pernas e vacilando no ar, antes de se esparramar no chão. Sentia pavor, vergonha, pena, um tal cocktail de emoções que, várias noites seguidas, enquanto ouvia a mãe chorar baixinho no quarto, teve ímpetos de dar cabo dele. Veio cá fora esperá-lo, sorrateira, com uma pedra na mão, olhando do pátio, a ladeira de onde ele iria surgir para continuar a atazanar a sua pobre mãe. A mãe, que as mães têm um dedo que adivinha, pressentiu algo errado e deu com ela, aguardando o pai com a pedra na mão. Repreendeu-a. E disse-lhe que ela não entendia o seu pai. E ela raspou-se para o quarto, sem saber por quem nutria mais ódio naquele momento, se pelo pai, irresponsável e alcoólico, se pela mãe que o protegia, sem que ela pudesse entender os adultos. E ele não era agressivo, apenas frágil e doente. Todas as noites, quando chegava, entrava no quarto dos filhos e, mesmo todos fingindo que dormiam, todos se viam na obrigação de acordarem, e o pai perguntava: filhinho, gostas do pai? E os irmãos repetiam sempre o mesmo, que sim, que o amavam e o alcoolismo, o despropósito, a tristeza e a pena que nutriam por ele. Menos ela. O pai exasperava-se e ela mantinha o mesmo: Que ódio sentia por aquela criatura! E a mãe vinha e repreendia-a sempre, e pedia-lhe para dizer ao pai que ela também amava o seu pai, muito! 

Lembrava-se da miséria e hoje compreendia-a muito bem. Que fora essa miséria que tinha feito com que a mãe, variadas vezes dissesse aos doutores e a quem tivesse mais posses que ela, que se quisessem levá-la, à pequena e lhe dessem uma melhor vida do que ela lhe podia dar, seria muito grata. Coisas que se diziam pela boca fora, quando a miséria e a falta de provisão financeira subiam pela garganta e saíam pela boca fora. Mas ela não via assim. Não sentia assim. Lembrava-se de várias coisas da sua infância e agora entendia que todos aqueles episódios fizeram dela o que era agora. 

Quando sozinha, e porque sempre gostara de animais, lembrava-se de fazer funerais às formigas em caixas de fósforos, ou se os animais fossem maiores, enterrava-os na terra mesmo, que ia às campas no cemitério roubar algumas flores para pôr noutras campas que não tinham nenhumas. Lembrava-se de visitar os hospitais, porque havia velhinhos e meninos que não recebiam visitas e ela visitava-os, para trazer-lhes um sorriso, como forma de lhes dizer que não estavam sós, que a tinham a ela. E também se lembrava que, já com mais anos, entre ajudar a mãe a lavar os pátios dos senhores doutores, retirando os vasos para que fossem limpos por debaixo, de ter decidido, para ganhar algum dinheiro e ajudar a mãe nas despesas da casa e dos irmãos, de entrar em grupos que desbravavam as matas. O senhor que os contratava aguardava por eles e para que tivessem força, entravam nos bares e bebiam as ponchas e as aguardentes que lhes retiravam o frio e lhes davam a energia necessária e depois, em bando, limpavam as matas, até não terem mais força. Ainda tinha trabalhado na caixa de um supermercado, mas a irmã mais velha tinha vergonha de a ver numa caixa de supermercado que mostrava bem as suas origens humildes, porém a irmã, enquanto mais velha, não tinha visto a miséria tão de perto e vivia, pressupondo que as aparências eram um bem maior, assim ela pudesse esconder dos outros o que pensava da miséria.

Tudo se agigantava na medida do crescimento. As dores e os problemas pareciam saber que poderia aguentar mais por estar maior, então, depois de uma data de experiências que a pôs em xeque com a sua progenitora, decidiu abalar para a Suíça, como cuidadora de crianças e empregada de restaurantes. Surpreendeu-se por não saber nada de ninguém, por nunca ter escrito para casa, por nunca ter dado cavaco às tropas, mas essa culpa ou perceção viera mais tarde, porque naquela altura em que abalou, sentia que era isso mesmo que tinha que fazer e que não se atrevessem a meter-se no seu caminho e decisão. 

À medida que o tempo foi avançando, começou a sentir falta do cheiro do mar, do cheiro da mãe, da casa, dos irmãos e até do pai. E dois anos mais tarde, regressou a casa. Entendeu, assim, que todas as ladainhas e crenças produziam uma espécie de tecido, uma rede sarapilheira, limitando os sonhos e ampliando os paradoxos. Se um dia sonhara ser uma pessoa diferente, melhor, tinha que passar e obedecer aos ditos populares que a mãe conhecia de cor e lhe havia repetido no crescimento: Minha filha, para se ser doutor, já se nasce doutor e para se ter dinheiro, é preciso trabalhar muito, muito, vês a mãe, limpar escritórios, andar de joelhos nas escadas não chega. É necessário empurrares-te para o trabalho e se não tiveres filhos, melhor. Porque com filhos, a tua vida pode ser bem miserável. 

E a miséria encontrava-se em todas as partes, naquela ilha. Era só olhar e perceber. Ela percebia bem isso, crescera a vê-lo nos hospitais, nas ruas, em casa, nos vizinhos. Era uma espécie de peçonha gratuita que se agarrava às pessoas, que se colava nas paredes, que ditava o presente e continuava, se lhe permitissem, pelo futuro afora, até sermos enterrados naqueles buracos do cemitério, onde alguns iam tendo flores, mas se fôssemos mesmo miseráveis, nem flores teríamos na campa. 

Ela conheceu alguém de fora, deslocado na ilha e que partiria dali. Não havia miséria no seu porte e nem no seu coração e nem na forma com que a tratava. Ao contrário, havia paixão, interesse, simpatia, inteligência, cuidado. E no seu discurso, nem uma só palavra inspirava miséria. Madalena agarrou-se a essa paixão, a essa promessa de além ilha, de continuidade numa outra linha de tempo, longe de tudo o que conhecia, do mato desbravado, da poncha e da aguardente, das vassouras e das caixas de supermercado, e partiu. Construir o futuro em solo mais fértil. Construir a sua célula familiar, ter os seus filhos, a sua casa, os seus sonhos verem a luz do dia. Ainda hoje, sente a falta dos seus, embora mantenha um relacionamento estreitado pelo auxílio dos telefones e volta e meia se desloque à ilha como turista, visitando a família, e seja doutorada e a vida lhe tenha ensinado que a miséria não vence os sonhos, nem condene o futuro. Ainda hoje, o que sente mais falta, é do cheiro do mar, dos mergulhos a pique no oceano, entre as suas rochas, sem areia, do cheiro da infância através do mar. 

Comentários

Mensagens populares