José Régio & o Cântico Negro

 



A vida resume-se agora a dois tempos. Aquele em que acordo e o outro em que me deito. Escolhi a reclusão ou foi ela que me escolheu a mim? Dizem que o tempo avança e nos vai comendo as memórias. Contesto. Nunca estiveram tão claras diante de quem sou. Aquela que fui sempre até agora. Há três anos tudo mudou. Cada dia que passava, era mais um em que eu conhecia os outros e melhor me conhecia a mim. Continuo, prossigo, obrigo-me ao desabrochar da minha identidade toda, parida depois dos cinquenta, em consequência dos outros, nos meus dias. E digo ao meu pai que deveria ter sido sempre assim. Sempre fiel a mim. Sempre me preteri. Hoje não mais. Seja quem for. Não importa. Todos no mesmo patamar. Primeiro eu. E bem depois, os outros. E quem são os outros, senão todos os que priorizei antes de mim!?

Desde criança, desde que me conheço, Marte esteve sempre presente, a me energizar, para mudar os móveis, para arrancar da eletricidade o meu irmão do meio, para correr com o meu irmão mais novo para o hospital, para tomar conta deles, para encher os sacos de mercearia de todos os pobres que me batiam à porta, para dar de comer a todos os amigos que irrompiam pela minha casa adentro, para acolher a dor dos outros e, enquanto isso, esquecer-me da minha.

No colégio do Bom Pastor, onde entrei antes dos quatro anos, em regime de externato, era o bombo de porrada das freiras, eu e outros como eu, que eram colocados no quarto escuro e que nos espancavam com ardósia no rabo. Até convencer o meu pai que já sabia ler, que poderia entreter-me em casa com os livros dele, a ensinar-me a mim o restante. Ele concordou. E é mesmo dele que tenho mais saudades ainda. O meu pai foi pai e mãe e fez um bom trabalho. Eu é que não soube identificar as pessoas, já sem ele, que se aproveitavam de mim. 

Na escola, enquanto o meu pai foi vivo, ensinei a filha da professora a ler e escrever enquanto o tédio me comia as horas, porque nem ela gostava muito de português e nem eu de esperar pela turma inteira para continuar a aprender. Depois do meu pai morrer, na escola, sentava-me no muro do recreio a tentar entender os outros. Porque dentro da sala de aula era tratada como a coitadinha da órfã de pai. E era mesmo coitadinha. Porque nessa altura, antes de ele morrer, eu já era órfã de mãe viva. Depois, a coitadinha da orfandade completou-se. Entre várias empregadas que se sucederam, fui tomando conta dos filhos da minha mãe, adiando as minhas brincadeiras e sentindo que havia qualquer coisa guardada para mim, qualquer coisa indefinida, qualquer coisa que dividia o bolo da vida em duas partes, uma de sofrimento e outra de expansão. Sabia que havia luz dentro, dentro dessa parte do bolo, mas ainda não sabia que essa parte estava dentro de mim. Até aos meus doze anos. Nessa altura, soube que não havia morte. E que a vida depois de partirmos, era um prolongamento, assim como os jogos de futebol que o paizinho me levava a ver no Dragão. Na luz, foi-me revelado, julgo agora que pela minha insistência em lá ficar, que teria que voltar, pois havia uma missão incompleta. A minha mãe ausente que era uma mulher órfã precisava de mim para cuidar dela e dos filhos dela. Sei que não queria isso para mim, que me achava incapaz, que não queria tão pesada responsabilidade. Que não queria conviver com o homem que tomou como parceiro de vida. E tentava driblar as coisas, cheia de coragem ao enfrentar um homem de trinta e seis anos que tentou abusar de mim, que usava de formas maquiavélicas e narcisistas para manipular a minha mãe e a nós. Sempre pronunciei o nome do meu pai. Sempre invoquei o nome dele, quando me dirigia a essa pessoa. Sempre fiz frente. Que grande miúda que eu era, batalhadora e zeladora da família. A empregada que ficou connosco mais tempo usava da minha ingenuidade para poder namorar. Dava-me dois escudos e cinquenta centavos (que eu comecei a usar para comprar cigarros avulso, no quiosque da estação), quando queria namorar com o bombeiro e eu ficava, assim, a tomar conta da casa, a arrumar a cozinha, a tentar ser mãe dos meus irmãos. Após a morte do avô Rodrigo que era o meu tutor, e que partiu a vinte e três de Julho de mil novecentos e oitenta e quatro, a dor ficou maior e ganhou uma couraça que soube esconder, mas permitiu-me abrir o coração à avó Albina que ainda ficou mais seis anos, depois dele, creio. Quando o avô partiu, eu já sabia o que era partir, que era o tal prolongamento que eu não ia poder ver. Só não sabia, nem me foi dado a conhecer antes, era que o meu irmão mais novo partiria, nem dois meses depois dele. A dez de setembro, partiu o Ruizinho, atrás do avô e com o pai já lá em cima, aguardando ambos. Ele tinha onze anos e eu dezassete. Mas não são dezassete anos regulares, nem só onze. Porque todos os dias, a primeira e a última coisa que eu fazia (e creio que a minha mãe e o meu irmão, idem) era verificar ao quarto deles, se na almofada, se continuava a ouvir o coração do meu irmão. Assim, um dia era como se fossem muitos dias, que não se podiam contar em semana nenhuma, nem dividir, porque o amor só podia ser somado. Era ensurdecedor e causa de muita angústia, porém, a maior angústia seria não ouvir o seu coração bater sincopado. O Rui tinha o coração de um humano de cem anos. E foram muitas idas ao hospital, muitas hemorragias, muitas agonias noite adentro, muitas madrugadas e muitas manhãs em que ele se sentia cansado, exausto. Que o coração não dói, diziam-lhe. Não doía a ninguém, a não ser a ele e a nós, por simpatia. 

Dizem que a gente esquece a dor e é verdade. O tempo é a salgadeira que perpetua tudo, curando as feridas. Dizem. Mas é através da compreensão. Entrar dentro para ver fora. Para perceber a roda do hamster e todos os que giram nela, de acordo com os seus interesses e desejos. Da dor que se esgota na saudade, há-de haver fases intermediárias para nós, humanos. A dor de um mês, de um ano, de dez anos, da vida toda que se sumiu, naquele corpo que deixou de ser visível. 

Dizem que a vida é um fósforo e que dos dois dias, um já passou. E passou, passou por mim e olho para trás, como faço no retrovisor do meu carro e a paisagem fica lá atrás, até que eu deixe de visualizar, e no fim das contas, no fim das nódoas, no balancete necessário, só resta em mim o que de bom eu vivi. Não, não me arrependo do bem que fiz. Sim, arrependo-me de não me ter colocado sempre em primeiro lugar. Empurrar as minhas necessidades e desejos para um lado, onde dificilmente, se não fosse a reclusão, tornaria a ver. As pessoas serão sempre as pessoas. E onde é que há gente, realmente? E depois lembro-me muito do Pedro Barroso. E de todos os que partem, do Nuno Júdice, do Mário Viegas, do Vasco Granja, da Natália Correia, do meu pai, do meu irmão Rui, do Viriato, da Claúdia, da Lourdes, da avó Albina e do avô Rodrigo. Lembro-me de todos os que partiram e antes que o fizessem, me deixarem a saudade do imenso privilégio de terem partilhado momentos comigo, saudade essa que permanece e se acentua em dias de balanço. Abandonaram-me ou tiveram que partir, cumprindo os compromissos inadiáveis, daqueles que não dependem de chancela de ninguém do reino humano. Partiram e sei que deixaram partes, imagens, momentos. Definitivamente, morre-se, quando os que constam das fotos desaparecem, não importa para onde, para longe da vista, e nada podem dizer sobre nós, atestando que estamos vivos. A vida é um fogo que se incendeia, queimando tudo à volta. E quando chegamos aos balanços, começamos, aos que não partiram, a riscar-lhes o nome da nossa lista de gente que conhecemos. Porque, efetivamente, nunca os conhecemos. Nunca foram reais, usaram sempre personagens para poderem conviver comigo. Como se a vida fosse uma mera peça de teatro, em alguns atos. A todos esses, dedico somente uma frase: Ver-nos hemos um dia, só se tiver que ser. Dizem que a vida se mede aos palmos, entre a carta da parteira ao coveiro. Ouvi dizer isto num funeral. Nesse dia, sem saber, também eu podia ter morrido. Ou talvez eu devesse ter morrido. Ou talvez devesse ter partido, quando os verdadeiros amigos partiram. A vida só faz sentido partilhada. Digo eu, que estou numa reclusão voluntária. Não falo com cães e gatos, como dizia muitas vezes o ex. marido polícia, querendo dizer que eu falava com todos, mesmo os estranhos. Só falo com cães e gatos. E entendo-me e entendo-os a eles e sei que me entendem. A vida é um cálice cheio até à adolescência, meio cálice depois dela e se não estivermos atentos, os últimos anos serão de sede intensiva. Que a vida se sorve a si mesma, que as tochas que nos fazem sentir os cálices meio cheios vão partindo, sem endereço, sem visitas físicas, e os outros? Bem, os outros serão sempre os outros. Não me deixam saudades. Não tenho saudades dos outros. Questiono-me se estou viva e sou ainda humana, porque me quer parecer que resta muito pouco de humano em mim, e talvez seja assim com todos os desiludidos que permanecem, quando deveriam ter aproveitado para partir. A vida deu-me uma chance aos doze anos. Porque eu quis partir nessa altura. Não passou de um desejo negado. Vi a negação em direto dessa aventura de partir para o planeta do amor incondicional. Talvez eu já suspeitasse que o tempo me viesse mostrar que a minha "humanidade" tinha um prazo limitado. O meu nodo norte verdadeiro em Peixes. Há cinco anos atrás, quis partir. Pedi muito. Tive um novo enfarte, este mais grave, mas não suficientemente grave que culminasse com a minha partida desejada. E enquanto uns pedem mais uns anos, mais uns meses, mais umas semanas, mais uns dias, uma nova oportunidade, lutando contra doenças, contra violências e abusos, contra todas as desumanidades, o desemprego, a fome, a discriminação, tantas desumanidades, todos querem ficar mais um pouco, eu vou pedindo um dia menos, um dia perfeito, o dia em que não precise ver o sol nascer e nem ele me ver deitar. A vida devia ser tomada em doses leves ou então, de um só shot, como acontece com muitos. Não fui escolhida para ser recolhida pela luz, ainda. Não voltarei a mendigar partidas. 

E, atendendo a que a chancela é de Deus, ou da sabedoria suprema, agirei de acordo com o que foi previamente acordado. Só que na posição de primazia. Torno-me a mim a prioridade dos meus dias, das minhas escolhas. E só assim, saberei que ainda estou viva, e que só assim, dizendo não aos outros e sim a mim honro quem sou, e os caminhos onde me perdi não serão repetidos. Como dizia o José Régio, no seu cântico negro, que é meu também, e quando me dizem com os olhos lassos, vem por aqui, desejando que eu fosse por ali, há nos meus olhos ironias e cansaços e nunca vou por ali.

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