אלוהים ללא חרטות
Foi sempre aquele sonho o mais bonito, e tu nele, tu a banda sonora, os efeitos cénicos, argumento, apoteose e consumação. De tão distante e guardado, se havia tornado inalcançável. A forma mais fácil de dizer que se extingue lume e paixão, que se termina o sonho e se abre a porta à deceção. É que do nada que morreu, porque vingou, porque cresceu, então, se ninguém alimentou, regou, tratou, limpou, porque não adoeceu e se não finou? Meu amor, porque medrou?
Deus poderia responder e talvez o tenha feito, a mim, a ambos, baixinho.
Se ele tivesse que se arrepender de alguma coisa, acredita-me, nunca seria do amor. Que os homens se esqueceram do amor e o substituíram por tantas outras coisas, que valorizaram todas as coisas e inverteram os caminhos. Deus não se arrepende do amor, meu amor. Que ele é todo inteiro disso, dessa substância que o diabo cobiça, por não ser capaz de sentir. E eu, abençoada por Deus, no que vim sentir por ti, sinto-me duplamente bendizida. E bordo-te uma vez mais o amor que nutro por ti. Deus não se arrepende do amor. É da falta dele que o mundo se ressente.
E eu pinto-te outra tela, cheia de esboços e de traços constantes e repetidos, que no exercício do amor, a disciplina é tida e achada. E em todas as cores te encontro e todos os matizes te desnudam e definem, e em todas as telas és protagonista incondicional e eu vim revelar-te e revelo. E pinto-te o amor consoante o que sinto, e à medida que me entrego a essa visão, aumento a música de fundo, os degradés da tinta na água dos afetos vão exponenciando uma melodia onde não há tetos, não há limites e nem contaminações. Tu, puro e inteiro com defeitos e virtudes, tu boca, braços e beijos na ternura de uma língua musicada como o esperanto, em cadenza, num palco a solo, e és razão para tudo, para o tanto do estudo sobre ti, podes tu, meu amor, ser menos que um concerto de câmara, só tu e um movimento largo, enquanto te dispo todo, enquanto te aprecio, numa peça sem finale, onde intermedeio a sinfonia de te pintar, nesta melopeia. Tu meu amor, inteiro te inteiras de que o fogo que me consome é o mesmo que me dissolve na base desta música incidental.
Pintei-te ali, enquanto te olhava, sem nem acreditar ser a realidade, descalçava-te os sapatos da twins, as meias, e um pé de cada vez, colocava-os na bacia de metal com água de rosmaninho e alecrim, enquanto tu, sentado e obedecendo aos meus pedidos, me olhavas minuciosamente, de mãos poisadas nos jeans. Não podia sustentar o teu olhar, como Madalena, porque naquele momento, agradecia a Deus, misericordioso e misterioso, e queria lavar-te os pés, não com os meus cabelos, mas com os meus lábios e mãos, limpar-te do cansaço do mundo que passou por ti e nunca se apiedou, porque também tu nunca te queixaste, nem sozinho. A concha das minhas mãos levava aquela água curativa aos tornozelos, descendo até aos dedos, e voltava a repetir aquela mesma oração de agradecimento, porque apesar do cansaço que o mundo te trouxe, os teus pés continuavam os mesmos, com vontade de abrir caminho para a vida, ou talvez para o desaguar daquela noite em que, ambos, estávamos sentados num presente, raro, tão raro, bordado ainda de memórias puras, que ali mesmo se concretizava. Da boca, a oração e também as minhas lágrimas de rendição se juntavam no alguidar, onde a água cantava a mesma música dos corpos de dois amantes. E eu olhei-te, pela primeira vez, conseguindo suster o peso da emoção que me estremecia por dentro, como um vendaval destemperado que arrebata o mundo de um só trago, e foi então, que tive vontade de te mostrar todos os sonhos guardados nos bolsos, de tempos imemoriais, desconhecendo se ainda te lembravas, se ainda vias o mesmo que eu, cores e nuances, e abri uma varanda à noite, uma almofada no soalho fresco e convidei-te a sentar. E abri-te o peito, o meu, e refugiei-me no teu, entre as tuas pernas, agora sem roupa, e finalmente, senti o sonho se liquidificar, poroso, com cheiro de ervas doces e águas marinhas, depus a minha fragilidade aos teus pés, eu dizia-te que o mundo se havia esquecido de tocar a nossa música e tu mantinhas o silêncio, deste feita, sem sombras nem cadáveres, apenas disponível, um silêncio que se prestava ao desvendar de segredos e ao entendimento, ao ritual que há muito guardava e que tu entendias que haveria de se manifestar. E arranquei-te os jeans pintados de índigo, a camisola de azul-água e borratei a defesa com que me afastaste todos estes anos.
Não foram velhos e nem novos hinos, não, o trino do desejo guardado foi exatamente o mesmo, a nossa música, primeiro em solfejo, a composição que permaneceu além de nós, e me diz de onde reconheci a paixão e o amor, como braços do mesmo rio que guardou o tempo próprio para desaguar na foz. A música estava dentro e fora, no mundo e entre nós, de um desejo voraz, sem dar tempo para planeamentos e nem restrições, uma enxurrada de acordes líquidos tocando o mais profundo do meu ventre, a ansiedade foi um pássaro que voou para perto das águas, quando a noite subiu os termómetros no nosso corpo e libertou os fantasmas que habitavam a nossa casa, outrora encerrada às saudades. O ritmo da noite entre velocidades, dueto em fuga, largo, adágio, andante e allegro, que é o mesmo que dizer lenta demorada, feroz e descontrolada, as minhas mãos foram pincéis e ancas arrancando gemidos à tua boca e vi-te os olhos desiguais, arredondei o verde-musgo e estendi-me, como um cobertor de esperma, em oração da gratidão à tua pele toda, sobre nós nenhum arrependimento, pintei uma brisa suave e fundi-me a ti numa volúpia de êxtase e exortação, que Deus estava ali na execução dessa peça que há tanto chamara sonho. Depois, a tua respiração acalmava e voltava a subir-me ao pescoço, o gozo de sentir-me mulher, outra vez, a fêmea, a leoa, o animal instintivo e emocionado e, depois, só depois a contemplação, em crescendo e à capella, te entregava a tela destinada da minha rendição.
E entre o nosso sono e o cansaço guardado, abandonamo-nos a uma alvorada sem nome, sem tempo, sem memória, onde repetidamente, te contei a história que recordava que me havias tu contado há tantas vidas, num outro entorno, onde nenhum dos dois se esqueceu do abandono e da saudade do outro.
Sobraram medos nos intervalos de espera, cedências e desesperos, sobraram receios e dúvidas, e nascia-nos saliva entre as décadas, pelas escadas do tempo que se gastou, nos fontanários e nos montes, onde se construíram mentiras com as cores mais garridas para nos ensandecer, para apagar a memória que Deus preservou em mim. Ainda sou semente, flor, fruto sem nome, jardim em cada lugar teu.
Tu és a quimera e o sonho, a eterna espera, a efémera dor, primeira sinfonia, a primavera em flor, a doce e terna lembrança do amor, brincadeira de criança. Tu és a labareda do meu anseio de fêmea, ao cio. Tu és vento, tormenta, mar, rio e cachoeiras, jardins de éden e piras de lume, fogueiras onde ardem, desde o princípio do verbo, todos os calendários de amar intensamente. Ainda hoje, do futuro, tu és a estação onde germinam as sementes e se colhem os frutos, melaço, legumes e as especiarias que temperam o mais profundo do amor. Ainda hoje, tu, princípio e fim, com um intervalo de obstáculos e muita determinação minha. Ainda hoje é assim, e se escreveres na minha pele o fim, apagas o anseio e semeias o trigo. Faz uso do óleo e também da tinta acrílica, mas pinta-me inteira, a teimosia, a ternura, a paixão, a entrega urgente, e não esqueças do dom que tenho de preservar as emoções mais antigas. Ainda hoje te espero no seio de um tempo só nosso! Escrevo o futuro e endosso-o a Deus. Tu que vieste para mim dos céus, tu que ficaste em mim, quando gritavas adeus ficou um eterno até já, mais do que incêndio de verão, muito mais que as inundações que reduziram a atlântida à lenda, muito antes dos séculos vencerem e se industrializarem, muito antes do arrependimento de Deus. Meu amor, desenho-te o patamar, um lago e alguns jasmins, meia dúzia de malmequeres e, no panteão onde te sequestrei a alma, te esperarei para te dizer que sou tenaz, resiliente, cana de bambu, que me vergo a deus e é nele que te espero, sim, nele! Que o amor não se oprime, se comprime, se esgrima, que o amor se destina a ser vivido, sem atalhos e nem caminhos fáceis, só o amor e mais nada. E nele, meu amor, nunca haverá lugar a arrependimentos.
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