Naidhana Rajata 12th

 




A minha vulnerabilidade é imensa. Não começou quando partiste, pai. E se já fez cinquenta anos que partiste, fará 58 que ela existe. Já veio do útero. Não fosse a tua permanência nesses primeiros anos e aí, sim, não seria vulnerabilidade, seria um feto expulso, de veias e fraturas expostas, não seria um ser humano, como sou hoje. Não seria. Ponto. E todos vós me dizeis que até isso devo agradecer, porque me tornaram resiliente, porque me fizeram dar os mergulhos constantes para me entender e aos outros. Conheço-me e creio conhecer os outros, por esse grande entendimento de mim e dos meus quês. Dói-me tudo, ainda, pai. Que quando partiste, ainda cá ficaram os outros, todos os que ficaram menos com a tua saída antecipada. A quem tu também ajudaste a se tornarem, através das dores, mais resilientes e mais empáticos. Mas quis Deus que, um a um, todos partissem. E assim foi. Depois de ti, foi o avô Rodrigo, fará agora, a vinte e três deste mês, no dia do aniversário do tio Domingos, que também marchou para o céu, com o seu cancro no pâncreas, com a sua tosse aumentada, e a sua magreza repentina. Ficou imaculado e inteiro dentro de mim, porque não fui vê-lo ao hospital, quando ele me chamou. Mas doeu-me a sua partida. Ele era o segundo pai. Duas vezes pai. Ele protegia-nos, é verdade que sim, ensinava-nos, tentava substituir-te da maneira que sabia. E ele sabia tanto, pai. E nem dois meses depois, a dez de setembro, repeti-me a mim mesma, que foi ele que veio buscar o Ruizinho. O meu irmão, o meu filho primeiro, como não nos desfazermos com a perda dele? Como permanecer inteiros, sem a sua doçura e abraços, o seu coração dilatado e tão frágil? Bem sei que tudo acontece por uma causa bem maior, mas a nossa fisicalidade não nos permite entender. E sim, dei por mim a ser egoísta e a culpar Deus de tudo e de nada. De me roubar todos os que amava, tal como tu. Deus não era justo. Porque na minha equação de perdas, ele foi sempre o grande denominador da dor. Porque se nos amasse realmente, teria nos deixado amparados. Uma família quer-se junta, coesa, inteira, próxima. E isso não tivemos. Nunca tivemos, pois não, pai? No dia do fim do Rui, quando voltei do cemitério, ainda toda molhada, fui à sala, estava lá sentado o Milo, o pastor alemão. Lembro-me de me ter sentado no chão a abraçá-lo, lembro-me que alguém saiu da sala, fechando a porta atrás de si, e vi o avô Rodrigo, assim que a porta fechou, com o boné ao xadrez castanho na cabeça olhar-me e cair ao chão, como uma carta fina desses baralhos que vocês usavam para jogar a sueca, o keims, as copas. O avô mostrou-se me e entendi que tinha de ser, que tinha de o vir buscar. A mãe voltou ao seu mundo de combate através da superficialidade, da rigidez, da carreira, do trabalho forçado. 

A avó Albina fazia-me companhia, conversava sobre o tudo e nada que compõe o baú de recordações familiares, mas também ela sabia que tinha um prazo e até soube quando ele se aproximou o suficiente, para nos dizer. Que sabemos sempre quando essa senhora de negro nos vem visitar. Mas só nós. Que os outros não são avisados. Não é mais uma regra. Tenho sido avisada desde há uns anos a esta altura. Da Cláudia, da Lourdes, do Viri, da dona Fernanda. Por que quando sabemos de que cor é feita a morte, começamos a reconhecê-la. Não tem mais forma de chegar sem aviso, de passar despercebida. 

Pai, todos partiram. A mãe está a ser visitada pela senhora, amiúde. E acordo com pesadelos que se tornam reais, que ela caiu outra vez e acordo com estrondo e ela está a cair na entrada do meu quarto. Está cansada. Desgastada. Não creio que, nestes anos todos, tenha aprendido a amar. Desapegada, superficial, fria, ausente, o que a liga ao mundo é cada dia, mais, o social dos outros. E lembro-me que, desde que me conheço, ferida pela tua ausência, que peço milagres. Prova-me Deus que existes, opera este milagre!

Comecei a acreditar em milagres quando ele entrou na minha vida, mas quando ele se ausentou, deixei de o fazer. A mãe usava de chantagem usando o teu nome, para que o deixasse. Não o deixei. Teve que o aceitar, porque não lhe dei outra alternativa. Não cedi à sua chantagem. Mas ele partiu na mesma, mais tarde. Como todos os navios, para um outro porto. Ele não partiu como tu, dessa forma limpa, onde o único dedo acusador é virado ao altíssimo, com as suas costas sempre largas, não, ele partiu porque eu não soube dizer-lhe o quanto o amava, porque achei que ele podia sentir no espaço que sobrava entre nós, do dia a dia. No olhar que lhe dava. Na minha presença constante no seu presente. Enganei-me, pai, porque são necessárias as palavras tanto como os atos, são precisas ser ditas em voz alta, ao invés de guardadas cá dentro. Devia tê-lo feito todos os dias, devia ter-lhe dito que o meu coração tinha tanto medo de que, ao dizer isso, também ele me fosse roubado para a morte, por esse grande culpado a quem tanto amo que é Deus em mim. Mas só há alguns anos acredito nisso. Aquela experiência de quase-morte foi um presente magnífico que me foi dado com doze anos e eu não soube valorizar devidamente. Acreditava que tinha sido fruto dos meus medos e perdas. E o que subentendi desse desfecho, também só há pouco sei, que não foi bem analisado por mim. Hoje obriguei-me a compreender. Desconheço se tem dedo teu na experiência, mas sei que tem dedo teu neste entendimento tardio. Tudo tardio na minha vida. Tudo, pai. 

Depois dos cinquenta anos da tua ausência, já te foste há meio século, também eu gostava de estar pronta para partir. Depois de tantas dores, também eu, outra vez egoísta, gostava de ir abraçar-te, finalmente. Mas, hoje sei que cumprimos um caminho singular, algures embaraçado no fio da vida dos outros, cumprindo desígnios desconhecidos por ora, compreendidos no final da jornada.  Sei que continuas a fazer-me falta, tu e eles, tu e eles todos, a Cláudia, o Viriato, a Lourdes, pai, todos me fazem falta. Todos me acrescentaram, todos me prolongaram a alegria que há muito não sei o que é. Vou vivendo as pequenas alegrias do dia a dia, os gatos, os cães, as flores e frutos, os sorrisos das pessoas que continuo a ouvir contarem histórias, nos vídeos e nos filmes. Vejo-te a ti nos meus dois filhos. O sorriso deles e das suas companheiras, os seus pequenos sucessos e alegrias também as faço minhas. 

Pai, o meu irmão tenta manter-se "de casa", mas vem de longe a longe para uma visita ocasional, adormece de dia ou de noite, foge daqui para o café mais próximo, para o exterior, cansado do silêncio da mãe e do dele próprio, cansado também da vida, preocupado e sem maiores alegrias que eu lhe conheça. A falta que nos fizeste marcou-nos a todos. Talvez até à mãe, que ao invés de, finalmente, se dedicar à família na tua ausência, ainda se refugiou mais na vida dela, no trabalho dela. Hoje meço-lhe o desprendimento afetivo como uma doença. Uma perturbação ou incapacidade de amar e ser amada. Neste tempo da sua velhice, três anos de conversas, tento repescar qualquer indício de afetos e desafetos para contextualizar o estudo da nossa família e a ajudar a ela. Disse-me muitas coisas difíceis de digerir, muitas coisas que não gostava de ter ouvido, mas que me ajudaram a perceber que, em resultado da tua partida, se o não fizesses, o divórcio seria a saída airosa, na sua opinião. 

A mãe, de tão ausente sempre foi, ainda ficou mais ausente, hoje corrigiria para autista, esse padrão de afeto embotado. Como se nunca acordasse do torpor da morte dos outros, durante toda a sua vida. Estava estabelecido o padrão dos afetos da mãe desde os seus dez anos e ninguém deu por conta, ninguém se interessou, e ainda hoje, ela fala da morte do pai associado à maldição do livro de S. Cipriano, a avó ter forrado os brincos de ouro de preto e estar feita um duque de paus, hirta e rígida diante do caixão, onde aqueles dois vultos de preto ao lado do caixão liam uma passagem desse livro negro no caixão do avô. Ainda hoje me fala que se não lembra de ter visto a mãe ser atingida pelo trovão, queimada por dentro, mas lembra-se que não entrou mais no quarto dela, que durante muitos anos da sua vida nem conseguia olhar para a fotografia dela. Ainda hoje que se prepara para partir, tenta passar ilesa entre os sentimentos, como entre os pingos de chuva, sem se molhar. E há muito me andais a dizer que ela se vai. E sim, tenho sentido a morte rondar os quartos, no corredor. Às vezes, encho-me sentimentos contraditórios, onde consta a raiva e a dor de perda e vou ao corredor afrontá-la, confrontá-la, querendo fazer-lhe frente, mas sei que ninguém a vence e que nem sequer existe, para que possa ser impedida. A morte em sentido figurado tem um sorriso de escárnio e no fundo do seu olhar, a infinitude de um abismo que só olhando sem desviar se pode sentir. E agora, quando falo da morte, não é a ela que vejo, mas sim a luz, outra vez, aquela luz que rompeu a minha dor e a rasgou em eras, separando o tempo, maturando e distinguindo por graus, as dores maiores das dores menores, ensinando-me a olhar de frente para elas e chamando-lhes os nomes que as mantiveram aqui dentro. Nunca soube reconhecer a morte como fim de missão, desfecho, conclusão, final, the happy end e foi sempre pra mim o triste incompreensível castigo. E é assim que vou expulsando cada dor, dizendo que já aprendi, que já não preciso mais de entender os porquês que vieram, como bainhas de rolo, cosidas a elas, as causas. Sou de causas, mas não quero mais estas. Retiro-lhes o poder que lhes dei, na minha ignorância tão imensa e tão infantil, tão carente e tão inóspita, fui o alvo fraco escolhido para as guardar. Sorrio perante a materna mania de dar colo às dores todas que tenho visto em mim e nos outros. Deixei de me achar um saco sem fundo, onde se pode guardar tudo o que dói. Cansei-me de ser o tal saco de pancada, o do proveito e da utilidade concertada dos outros. Sou uma nova pessoa, eu. Sou um eu novinho em folha, com belas rugas expressivas que me não deixam esquecer que já passei aqui. O meu rosto é o mapa desse passado, e quando sorrio dou mais fundamento ao presente e quando aniversario, como é o caso de hoje, dou profundidade aos meus desejos do futuro. 

O amor na experiência da vida é um pedaço de terra estéril ou uma roseira a desabrochar. Nós escolhemos. Eu decidi ser jardim. A mãe, descampado. Aqui, o solo é tristemente estéril. Um iceberg que talvez só Freud lhe visse remédio. Talvez nem Freud. Nem todos temos essa capacidade de sentir. Alguns de nós sente pelos outros. Como um apêndice auxiliar para transformar e revolver o solo, estrumar e aguar estas areias secas e poeirentas que a vida provoca em nós. Não sentir é também ter sentido demais, ter sentido até ao expoente de quebrar, de enregelar, de esterilizar, tanto desgosto sem nome e sem ser olhado, tanto grito guardado que não encontrou voz nem força para ser transmitido, que pena, paizinho, que pena sinto de quem não sente nada. É como ter asas e escolher não voar, pela dor que pode provocar cair e partir a asa. E eu reconheço agora que se guardam as emoções más e que estas podem arruinar as boas, provocar doenças, cancros, depressões e traumas que se tornam partes de nós, como novos órgãos, que se propagam em células que passam de geração em geração, marcando as árvores geracionais. E eu reconheço tudo isso porque sofri disso quando partiste. Porque não gritei eu? E depois, quando foi o avô e o Rui, porque não gritei eu, junto dos que ficaram, para os acordar do afeto embotado em que vivem? E mais tarde, quando ele partiu, porque não gritei eu o amor que lhe tenho? Porque me calei e guardei tudo, como fiz com o casaquinho da avó Bina, na tentativa de preservar o seu cheiro, a memória dos seus estufados, das suas sopas, do boné xadrez do avô, de todos os objetos que guardo de todos, como se, num princípio do novo mundo, vos pudesse recuperar através dessa matéria que não resistirá ao passar da memória, que o tempo há-de vir roubar também. Nada de vós restou nos edifícios físicos, nada, apenas nas fotografias, e até os teus objetos físicos que me fizeram companhia durante todos estes anos me foram roubados, como o teu pesa papéis e a pequena medalha da coruja e tu, daí, bem sabes quem o fez. E dizes-me que não me apegue a mais nada. Que ao contrário, me desapegue de todos, até do amor. O teu olhar segue-me, o olhar do teu padrinho mantém-se sereno e atento comigo. E o tempo que é sal vai curando hematomas como a saliva e os beijos. E tudo o resto é vida. Chove no verão e os trovões rasgam as nuvens escuras, carregadas dos afetos que os humanos guardam. E faz hoje anos que enganaste a mãe, convidando-a para um piquenique, levando-a a tua casa e dizendo que, por lapso, a família já tinha ido toda sem vós. E contaste-lhe uma história. E eu sou essa história, pai Francisco. 

São duas da madrugada. Vou pedir mais um milagre: ver-te esta noite num sonho. Ver-te, paizinho. E anexo uma música que diz de ti o que gostaria que dissesse de mim. Hoje tomo o relaxante muscular. Hoje fumo mais um cigarro e empurro-me para a imersão onírica. Pai, a vida que nasce do amor é o mais belo dos milagres. 



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