Nos jardins de Saturno

 




Pus-me de pé, depois de ter passado mais de três horas aninhada, entre os pensamentos e as ervas daninhas. A tarefa da poda tem-me auxiliado a focar o pensamento no que antes me estava oculto. O discernimento, aqui, entre as plantas e arbustos e o resquício de flores campestres, tende a ser mais lúcido e persistente, pouco ruído abala essa parte de mim, bem mais ativa que os meus dedos cheios de terra, grampeando de um lado, e arrancando do outro. De cima, podia ver o panorama geral dos momentos vividos na glória da coroa de espinhos. O sofrimento é redentor quando atinge o cume. Até lá escraviza, de golpe e, outras vezes, lentamente. E a morte lenta das situações é sempre mais tolhida, mais doída. O jardim que me habituei a ter em criança, planta a planta, flor a flor, pessoa a pessoa, todos morrendo, todos partindo, todos ficando, e substituindo as cores do jardim, as dores coloriram tudo. Mas não me dei por vencida. Continuei a desenhar estrofes e a musicar momentos. Depois alguém quis fazer crescer um jardim, as ervas daninhas romperam, não havia ninguém para as podar, tudo negligência em volta, só as crianças sós, deixadas sem direção, sem empatia, sem compaixão. No meu jardim, o meu pai, o meu irmão, os meus avós e amigos continuam presentes, porque me ancoro nos bons momentos, que os maus prefiro esquecer. E mantenho-me na luz, para substituir a cegueira, porque quero ver. E assim, aprendi a podar, a jardinar emoções. Doutorou-me a vida, nas feridas e no abandono, na permissividade e, no retorno de saturno, que é o meu professor preferido. 

Sempre apreciei os jardins. Tive bastantes épocas na minha vida, segmentada por abalos que só eu posso falar com a devida propriedade, em que me achava sem direito, a almejar tomar conta de um jardim. De alguma forma, sentia-me culpada se algum prazer me viesse retirar do sofrimento, onde muitos me queriam. E a coroa de Jesus era de espinhos e, a de todos os mortais é feita dos despojos da ignorância, da inveja, da ira, da maledicência, da mesquinhice, da pequenez, da malícia e também da ternura, da compreensão ou da sua ausência, da falta de carácter dos outros. Conheci pessoas das mais diferentes origens, vivendo os mais diferentes chavões, como sejam o de querer o bem para si próprio e não para os outros, outros queriam o bem para os outros, mas nunca mais do que para si, e até conheci pessoas que nunca ambicionaram o bem para si e nem para os outros. Eu inseri-me, e nunca é de alguma forma, mas sempre da mesma forma, quando falamos da natureza da personalidade ou da coesão do carácter, na faixa dos que colocam o bem para os outros, acima do seu próprio, acreditando que quando os outros estão bem, então também nós estaremos bem. E assim tem sido, até chegar aos jardins que comecei a tomar como meus, em vésperas do regresso, pela segunda vez, de Saturno ao meu céu. Recordo-me de muitos vultos e de muitas maquinações, realizadas nas minhas costas e até na minha presença, como imagens de um filme de arquivo, onde eu cedi o meu consentimento, via silêncio, cumplicidade e muita ingenuidade da minha parte, à propagação e continuidade do mal dos outros sobre mim. Uma espécie de pudor me impedia de ser em absoluto quem eu sou, melindrada, envergonhada, não querendo, de maneira nenhuma, ser vítima e nem persecutória da infelicidade ou da mira da inveja dos outros. Quem construiu as crenças sobre a minha vida fui eu. Não posso culpar ninguém por tal absurdo. Fui eu que quis ver o bem em todo o lado, fui eu que vi beleza nos outros. Fui eu que fui edificando patamares e pedestais aos meus inimigos passados e atuais. Todos se não suportavam uns aos outros e hoje unem-se pelo bem comum, o da inimizade. Hoje, neste pedaço de mundo, a terra continua bonita, as flores, o vento que passa, as borboletas e pássaros, os meus gatos em interação constante comigo, tudo o que me rodeia é bonito e natural. Tenho a noção, enquanto vou revolvendo ambos, a terra e os pensamentos, que sempre procurei a estética afetiva, a estética de valores na vida dos que me rodeavam. E às minhas questões existenciais, chegam respostas que não veem tarde, porque ainda estou viva, porque estamos ainda a cultivar jardins nesta dimensão física, que todas as maleitas que trazemos, todos, impreterivelmente, são a marca da nossa infância. A infância, as suas dores e questões permanecem e, vão se revelando pela vida fora, como um puzzle, como mais margaridas e malmequeres, jarros-de-leite e os frágeis amores-perfeitos. Somos todos feitos de estames e carpelos, de pétalas, sépalas e pedúnculos: Tal como as flores, só que com outros nomes técnicos orgânicos a que atribuímos diferente nomenclatura. A semente que trazemos e o adubo que recebemos irão ditar a sentença da sua fertilidade e da sua esterilidade. Nós humanos, tal como as flores, possuímos tudo isto, obedecendo a uma natureza rítmica e assertiva, à qual se não foge. As pétalas das flores, bem como as sépalas que são a corola que recebe as pétalas, o recetáculo verde onde são protegidas de forma à sua inflorescência, o pedúnculo que é a haste que sustenta os frutos da semente, também nós precisamos de todos esses elementos para acontecermos e nos tornarmos completos. Nunca é olhando a semente que diremos da sua fertilidade, senão semeando a mesma e lhe oferecendo as condições mínimas para a sua reprodução. Quando digo que as sépalas e as pétalas contêm em si uma beleza de aparência, também digo que já trazem na sua memória o desfecho final, a inglória física da desagregação, e se com as flores o processo é rápido, normalmente obedecendo a uma estação, na qual, comparativamente aos humanos, diríamos que é um momento, um instante breve, entre nós humanos e aos outros animais, a coisa se faz mais demorada, por temporadas, necessitamos de mais tempo e espaço, para amadurecermos e cumprirmos aquilo que é esperado de nós. O que é esperado de nós pela nossa entidade superior, não pelos outros iguais a nós. Nós não viemos ser o que outros pretendem, nem ser o que os pais não conseguiram ser, senão a continuação progressiva. E a vida não é só a floração da nossa espécie, é o macrocosmo de inteligência dinâmica e responsável, na comparação possível à de um jardim, para uma evolução esperada. As florestas e bosques, bem como os jardins públicos, têm uma continuidade de eras e, normalmente, ultrapassam o tempo de vida dos humanos, se não forem vítimas da negligência ou da soberba do homem, e acompanham gerações humanas no planeta. Os jardins individuais, não. São mais frágeis, mais instantâneos e muito mais suscetíveis ao perecer, por todas as condições, sejam elas externas ou internas. Ambas progridem e um jardim, quando é um prazer individual, terá uma duração semelhante ao tempo dedicado do indivíduo ao mesmo. Os jardins coletivos são mais duradoiros, quando a humanidade ganha sabedoria, para cuidar e manter a sua fulgurância e vitalidade. Assim, os jardins assumem propriedades muito semelhantes à natureza humana, quando há, por detrás, uma consciência mais elevada, para a sua vitalidade e evolução. As expectativas mancham, condicionam, motivam ou eliminam, porém, elas fazem parte, como vírgulas numa frase extensa, com vários sujeitos e predicados, do desenrolar do caminho. Esperar que os humanos sejam sensíveis à vida, condicionamentos do outro, é como esperar que os lírios não morram. Ou que nasçam vidas onde não houve inseminação. Todos somos condicionados, todos sofremos de expectativas, todos somos manietados, de alguma maneira, a cumprir o que outros esperam de nós. Devemos regar amiúde os sonhos que nascem nos intervalos das expetativas alheias e no controle, seja ele a que escala for, da nossa própria vida. Os pais, tal como a terra, a água e a semente, devem fertilizar o solo, acondicionar e proteger o embrião, o bebé, o menino e deixar que este, à medida que cresce, tal como os filhinhos das minhas gatas, que elas permitem que as suas crias explorem, que questionem e que tenham sede e água para as nutrir. Os animais não mantêm em cativeiro as suas crias, oferecem-lhes o mundo cheio de perigos, mas andam próximos para lhes garantir segurança. Não os impedem de viver. Não lhes ensinam a roubar, nem a mentir, nem a omitir, a discriminar, nem a temer, nem a secar ou mirrar. E os seres humanos deveriam ser supervisionados, por um coletivo maior, deviam ser impedidos de desviarem o natural curso das suas missões, as rotas próprias que trazem na memória invisível do seu ser. E todos viemos deixar uma marca, acrescentar um legado, enriquecer uma forma de vida mais elevada. A flor possui essa memória que já está impressa na semente. A criança possui uma memória do legado que vem trazer. E aos olhos de quem não se conhece a si mesmo, todos os que pensam como eu, são chamados de loucos, de preferência calados e acorrentados a uma roda de desenvolução. Se isso lhes fosse possível, assim o fariam. E eu chamo-me de marginal. E todos os que conheço semelhantes a mim foram e são marginalizados por uma sociedade copista e conservadora, ignorante e opressora que teima em seguir modas ao invés de seguir raciocínios, que teima em produzir doenças crónicas continuadas ao invés de as extirpar pela raiz, que mantém a aparência, no uso de uma ética coerciva nos padrões de carácter, ao invés de uma ética por convicção e análise. A luz arranjará sempre forma de entrar. Nem que seja pela fenda da própria venda que nos querem colocar. 

Saturno é rigoroso, trabalhador, obriga à constância, à assertividade, à abnegação, à paciência, à restrição, à resiliência, à longevidade, ao término dela. Não aspira riquezas, não aceita coqueteria, nem hipocrisia, rasga as mentiras como se fossem pétalas de rosa em fim de vida. Saturno não aprecia prazeres, é um professor rigoroso, insistente, lento, demorado, lutador. Todos saberemos das suas inúmeras qualidades e defeitos, é tudo uma questão de cronos. Por isso, lhe chamam o senhor maléfico. Saturno, muito embora seja solitário, e que se conheça, não gosta de socializar com outros, ele sabe que tem de o fazer, porque também este senhor ermitão depende do intercâmbio de outros senhores. E se Saturno pudesse, destruiria o meu jardim, o meu prazer e deleite nas flores e arbustos que vou podando e dispondo, ao redor da sua auréola. Mas até saturno o fazer, quem vinga é o espírito que eu acalento, a minha nobreza de intenções e ações, o meu propósito. Saturno sabe que amo as flores e que não posso ver jarras vazias, tal como a minha avó paterna, mas saturno também sabe que eu não vim imitar a minha avó, por não ser cópia dela. Vim, em primeiro lugar, dignificar os que vieram antes, ao seu trabalho, cansaço e amor, pouco ou nada reconhecidos, e tantas vezes esquecidos, e vim acrescentar a minha própria marca, à marca bem formada dos que me precederam. E os meus filhos que trazem sonhos e planos, também eles acrescentarão e se empenharão na dignificação dos que passaram e dos que virão. Por isso, quando, já distante das ervas daninhas e das suas ignomínias, e do cansaço transmutado em prazer, ali, naquele pedaço de chão, olho a terra revolvida, os verdes e azuis, e para mim a música continua, de fundo, adubando as minhas intenções. 

Se eu pudesse encher uma sala com todos os meus inimigos, declarados e ocultos, todos se envergonhariam de ver as mentiras cair, diante dos seus olhos. Quem anda na luz não receia nada. Quem anda na escuridão, tem medo da verdade, de se conhecer por inteiro, de defender coisas e causas. Isto é matéria de carácter ou da falta dele. E o carácter não se compra. Ou se tem ou não!

O perdão aos outros não é matéria de saturno, nem dos jardins que lá fazemos florescer, é matéria de neptuno, de plutão, de Júpiter, de vénus, de marte, do sol que há em mim e da lua que me trouxe. E do carácter que se não verga. Vim somar e não subtrair. Vim para abolir a exclusão. Vim ser gente de verdade. E como sei que o que não me acrescenta, nem me identifica deve prevalecer, depressa aprendi a recorrer à poesia, a substituir adjetivos e pronomes pessoais por outros mais agradáveis e à palavra guerra, substituí-a por amor e à palavra ódio por flores. Era jovem ainda, quando aprendi a fazer estes truques de magia. Manifestar quem somos. Antes sentia embaraço das minhas escolhas, hoje sei que foram necessárias para saber, verdadeiramente, quem sou e o que vim cá fazer. E eu não vim competir, mas antes colaborar. 

Escolhi não repetir padrões, não ser Dolly, a clonada, vim ser eu, semear paz, amor, tranquilidade, sabedoria e prazer dos meus prazeres, musicar os momentos que me identificam. Eu sou a colheita do que semeio e não a colheita das expectativas dos demais e, menos ainda, das vossas intenções. Sou marginal, sou contundente, rude às vezes, nem sempre, sou frontal e direta, sou parte do todo, esse todo que, ao invés de escolher amor, vai deixando a porta aberta para vingar o que de mais feio os nossos ancestrais quiseram mudar. O objetivo primeiro dos jardins de saturno é o de mostrar que por mais condicionamentos vividos na infância, por mais traumas e malefícios, pela permissividade, pelos feitios e defeitos que tenho, se eu consigo produzir bons sentimentos, não obstante o que me condicionou, também vós podeis fazê-lo, sendo amorosos e constantes e deixando a ignorância de lado, o carácter floresce, sem vitimar ninguém. Isto é ter Saturno como atmakaraka. Esta é quem eu sou. 

Recolho-me na gruta de novo, depois de uma bátega de chuva precipitar-se sobre a terra combalida, e aos trovões que oiço, substituo por escalas musicais, entro na escuridão do abrigo e me proponho a mais uma composição de mim, e vou compondo um prelúdio para um outro texto, de outro jardim sagrado. Ryan O'Neal oferece a banda sonora deste jardim e Saturno aduba-me por dentro, antes da chegada de Mercúrio retrógrado.


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