Enterrado vivo

 





Fui, de linha em página, de comboio em navio, de estação em cais, de ultimatos em memorandos, adiando uma despedida que se fez há muito. 
Eu própria me vi Peter Pan, Alice no país das maravilhas, recusando descer da nuvem e enfrentar a dor que se prolonga, mais um dia e uma noite, mais dez anos, mais um século, mais um apeadeiro, mais um progressivo e redondo não sem boca, que cai assim, no silêncio desta tarde, onde me chamam louca, eu própria o faço também, num completo desvario. E não se morre de amor, vive-se por ele. E a minha alegria, nesse amor antigo e sempre novo, viajou como os comboios que partem sem nem conhecermos destinos, levam na frente uma parangona que dificilmente sabemos ler. O que me alimenta e queima não é o carvão de outrora, mas a paixão contínua do agora, a ignição persistente, da tua voz que imagino, do rosto que beijo na foto, das lembranças que se não apagam e, ao invés disso crescem, se amontoam entre os meus braços e o peso desta saudade de ti. Empurro-me, tu sabes, que me empurro para o sono que vem por cansaço, estremeço, porque na noite escura, se desenham dois faróis, o meu grito, dois anzóis que se acendem quais astros fixos, lua e sol, almejando pescar a estrela, aquela, a tua, no firmamento do amor que trago por ti, escondido, nas câmaras auricular e ventríloqua, todos os cárdeos disparados, um nó atado na minha inoperância de te esquecer. Vi o mundo arder em chamas, o poder se destituir e passar de mão em mão, a corrupção prescrever com a sua normalização e dela nascer o poder vigente, o verão se alterar e dar lugar a outra estação entre o outono e o Porto, entre o vivo e o que se quer calado e morto, que sou eu, sentada num lugar cimeiro, de mangueira na mão, na cabeça, um chapéu de bombeiro mas é sempre o meu coração que arde, são as chamas dele que se mantêm e não há cinzas à minha volta, somente lume e labaredas, arbustos e azedas, percursos e desvios, translados e no fim, nunca vem o fim de tudo, no amontoado da falta que me fazes, de sonhar acordada e de ir enlouquecendo, de estação em estação, de lembrança em lembrança, de tristeza em tristeza, eis tudo se soma ao invés de se sumir. E se não durmo, transnoito, anoiteço no sonho de te voltar a beijar. Aos meus braços crescem correntes, na boca fendas, aos meus olhos, as vendas, que anseiam me cristalizar para que fique cega e te não possa ver ou desejar, para que me cale de uma vez por todas, para que não fale do que me conecta a ti, sendo que és o cometa do firmamento de mim, desconhecem que o meu coração tem impressas coordenadas, rigorosas e exatas, da tua latitude na minha amplitude miocárdica. O silêncio é a gangrena que mantém e disciplina, que ordena e prevalece, impondo a cadência de ritmo, da calidez da tua voz, na musicalidade do teu sussurro no meu ouvido, a permanência do desejo do teu beijo, da síntese fria e analítica da jazida do mundo. Não sou de cá, vim para te ver, não sou, e o meu destino é o amor que trago e não te posso entregar. Rasuro linhas de comboios, e nos intervalos, onde ambos viajamos, opostos, em sentidos contrários, se estabelecem metas, outros as estabelecem e impõem, e distanciam-te de mim, que o meu amor não é daqui, não é para ti, não germina e só culmina na guerra que lhes agrada, no pulso de ferro da guerra, no destaque que cresce sobre a sangria desatada do mediatismo, da bulisse estancada e da falta de estoicismo, da vigarice e do patrocínio para toda esta manutenção, do edifício da simulação de sua altíssima hipocrisia, solene, solenemente vai tomando conta de tudo, das estações, das linhas, dos apeadeiros, dos navios em mar alto, dos destinos de terceiros, e eu que tinha tantos sonhos cá dentro, os olhos apagados tristemente, que nem uma só semente vingou, que deles é tudo farolice, tudo opinião, tudo momento e ocasião, tudo agora e nada que cresça, que floresça. Os jardins, junto com os comboios, passaram a ser de utilidade dúbia, quando chove não é chuva, quando brilha não é luz, e quando cresce, até a fertilidade é doente, do fruto de tudo o que é efémero e decadente, profícuo parido num instante, estrela cadente, que clareia e risca a noite do céu e desaparece para sempre, como se nunca houvera sido, como se fosse recriação, ilusão breve de um autista numa ala psiquiátrica de um hospício global. O teu amor está comigo, não to entreguei, foi-me devolvido por ser desconhecido o remetente. E agora, a estação apagou as luzes, os comboios deixaram de cruzar destinos, os velhos ficaram retidos entre idades cinza do tempo passado, gemidos de dores sepulcrais, não se distingue o real do ilusório, e tu és fumado como um cigarro provisório, apago-te estarrecida, pelo peso da cegueira que te penduraram, apago-te o nome, a lembrança, os caracóis, os olhos, apago-te com borracha, com outras tintas, rasgo-te em mil pedaços e tu renasces comigo todos os dias e adormeces ao meu lado, vitalício e permanente, postergo outros textos que dormem entre os meus dedos, não sei mais fingir comboios nem estações, nem destinos, nem ilusões. Dizem que o amor que trago foi um acidente, que está em coma, ausente, que para ti morreu, há muito. Não lhes sei fazer frente, não te posso abrir a mente. Desisto, com Deus por minha testemunha. O amor não se impõe. E por mais textos compostos, onde a minha visão te podia mostrar a paixão, só viu a cegueira, a fronteira, o limite que foi o teu nome, a alcunha, a aceitação da vontade alheia.
E agora, que te não escondo, antes te revelo, agora que nada nos une no concreto, não há mais nenhum elo, nem nenhum novo dialeto para te dizer da falta que me fazes, para te fazer entender do rumo que escolheste, avesso ao teu coração, da escolha pela conformidade ao invés da luta pelo amor autêntico, vejo-me já no luto, não há mais sonhos, não há mais esperança, nada vingará da semente que carrego comigo há tanto tempo. Apenas o destempero, apenas o flagelo, apenas e somente o desconsolo de me dar conta que o amor só é amor quando tem cumplicidade, quando é oferecido em perfeita igualdade. 
Há um porto dentro de mim que me quer rebentar, muitos diques, muitas fontes do que não quero guardar, não te quero guardar, aguardar, dói muito e todo este tempo foi florescer saudade e isso só me está a matar. Não te posso esperar, nem aos comboios e apeadeiros, vagões e incêndios, florestas e montes, penedos e ao sonho, que medrou sozinho, sobram folhas secas, terra árdua e estéril, mas nele vingaste tu, do tamanho de todo o amor do mundo. Que precisa sufocar. Desligar. A corrente! desligar as máquinas, de repente, num instante precisa falecer, junto com todas as coisas que o mantiveram vivo por décadas. Dou-lhe a racional permissão. Não há efeméride, nem celebração, nem exéquias fúnebres, nem cremação. Apenas silêncio. De ter de morrer, forçado. Que queriam que assim fosse, calado, escondido, envergonhado. Abro guerra à sua morte forçada, mas também eu sou calada, pelo silêncio que te apraz. Ao meu nome, retirem qualquer apelido, que o amor tem prazos e este já se viu vencido.
Amor será sempre, ad eternum, amén, mas não mais aqui, meu querido. Fica aqui o nosso requiem.






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