Diário de nutrição
Olá Nando,
Esta é sempre a forma que tenho de falar com quem considero ser digno de justificação da minha parte, mas muito além da justificação, da nutrição de amizade e força. Do carinho que sentimos pela forma humana de ser. Ser sensível, empático, vulnerável, atento, humano. Como tu és. Que ainda há humanidade dentro de nós, não é assim?
Perdoa-me, porque apesar de saberes que não te procuro, que sou desatenta com as chamadas e que muitas vezes não quero de todo falar, nunca foi pessoal. Não é pessoal. Ou seja, é pessoal meu, minha lacuna, mea culpa, perdoa-me. Feliz aniversário. Lembrei-me, claro, mas não posso dar mais do que dou. Seria desonesto prometer-te que te vou ligar. Não o faria. Assim, disciplino-me mais para cada dia menos invadir a vida dos outros e não permitir invasões à minha própria. E parece-me que tenho que arranjar sempre a mesma forma de compensar as minhas faltas que, é fácil para ti de saber, através da escrita. Não que torne a mensagem impessoal, ao contrário, porque te é dirigida, mas porque me mantém os níveis dos neurotransmissores controlados. Deixa-me dizer antes estáticos, como se nem uma folha bulisse para arribar tempestades. Não posso dar-me ao luxo de viver tempestades agora. Seria egoísmo da minha parte. Tentei e nem sempre consegui não ser egoísta. Hoje só o tento com mais força. Mais determinada. Deve ser a porra saturnina chamada responsabilidade. Austera, chata, severa, a castrar-me os ímpetos de pensar só em mim. A tua orquídea, a que trouxeste no Natal para a minha mãe, floresceu de novo quando todos pressupunham morta. Hades nela, hades e neptuno. Que belas orquídeas me olharam ontem, do peitoril da janela, a dizer-me bom dia e bom domingo da parte do Nando. Parabéns. Espero que esta nota pessoal te encontre bem de saúde e que os sonhos que ainda carregas, por mais frágeis, vinguem e te façam sorrir. Morreu o Fausto, já deves saber por esta hora, a não ser que estejas a podar árvores e videiras na Suíça. Soa-me inverosímil, porque no Verão nunca se poda, que é a estação dos frutos amadurecerem. Espero que os teus peixes estejam bem, obedecendo à sua natureza selvagem e que a tua mais que tudo te tenha ligado a desejar-te feliz aniversário.
Por aqui as coisas mantêm-se no mesmo fio, uma serpente desliza pelo estio do verão, tentando apanhar desprevenido um lagarto. Fiquei fascinada. Porque vi o lagarto e, por um breve momento, acreditei que estava enfeitiçado e que seria eu a tomar uma atitude para o despertar. O lagarto defendeu-se. Vi-o encavalitar o peitoril depois de ter corrido para debaixo da casa dos cães e vi a serpente deslizar num resvés à marcha anterior.
Queimei o último incenso que amavelmente me ofereceste no Natal passado. Tão fofo estava ainda. Como plumas das dunas da minha praia. E ao invés de me deixar assombrar por mais pensamentos pontuais, meti o nariz no livro. Esgadanhei apenas mais três folhas, arranquei pouco mais do que quatro ou cinco ideias ao cordeiro que tirou o pecado do mundo e, quando me senti estéril de mais, abandonei-me, derrotada às lides diárias, ao aspirador, aos caixotes do lixo, à separação dos lixos, aos tapetes malditos. Já não tenho força para estas coisas detestáveis e necessárias do dia a dia de toda a gente. Sinto-me débil fisicamente.
A noite passada, vê só, acordei sobressaltada e fui ver a minha mãe. Parecia-me ter ouvido um estrondo e pensei que, talvez ela se levantasse para ir fazer xixi e se tivesse estirado ao comprido. Eram quatro e dez da manhã. Mas não. Estava deitada de lado, virada para a entrada do quarto. Respirava muito leve, sem roncos e nem agitação. A agitação estava dentro de mim. Abri a janela interior do meu quarto, bebi dois goles de água e voltei a deitar-me. Estava mais fresco, puxei a coberta de croché que tinha aos pés da cama para cima e tentei apanhar o sono novamente. Deve ter durado uns cinco minutos porque ainda não eram quatro e meia estava sentada na cama, a testa banhada em suor, as minhas mãos dormentes e o meu coração como um cavalo do Gerês, correndo a galope. E foi quando me dei conta que não era nem sonho nem pesadelo, era novamente aquela mancha que deslizava entre o espelho da cómoda e a lareira. Fechei os olhos, procurei os lenços de papel, a caixa acabou, mas tento ter sempre um suplemento e encontrei-o na gaveta da mesinha de cabeceira. Limpei a testa e tentei erguer-me. Não fui capaz. A mancha continuava aqui. Acendi a luz e disse em monólogo interno que não receava nada externo porque já tinha vencido todos os fantasmas internos que me acompanharam. Venci-os. Não todos de uma rajada só, mas devagar, como numa marcha fúnebre. Também tu tens os teus e acredito que só ficam os de estimação e agarro-me a essa ideia. Ao longo destes anos terríveis que me trouxeram ao isolamento, vou liquidando-os, um a um. A mancha desapareceu quando acendi a luz. Bebi água e fumei um cigarro. Ao contrário de muitas noites desde que iniciou o Verão, esta estava escura e carregada de um nevoeiro. Os braços da enorme cerejeira já tocam na portada da janela. O céu escuro, guardando todas as estrelas e eu sentei-me na janela e não demorou muito para ter companhia. O Niko e a Minie vieram sentar-se ao meu lado. Assim, vi o dia nascer. Eram sete menos dez quando saí do torpor, pus o telemóvel para despertar as dez horas e não transpirei mais nem a mancha me ganhou quando tornei a apagar a luz, depois de fechar a janela.
Acordei com o corpo sem qualquer dor, sem sentir debilidade de energias e fui para a cozinha. A casa estava adormecida, os animais lá fora também. O sol estava alto já. E se nestes últimos dias, o clima tem feito imensas caras, hoje está um dia execrável de calor. Tomei o meu iogurte de mirtilos, liguei a máquina para o café escuro e bebi um valente copo de água. A orquídea mantém-se bela e sossegada ao lado da espada de S. Jorge. Fui mudar a água dos animais na churrasqueira, alimentei-os do mix de rações. Ainda não vi a Mimi, todos os outros estavam na sombra. Vi a caixa do correio. Nada. Voltei dentro de casa, acordei a Eva, que escolheu hoje pequenalmoçar granola. É sempre uma luta para escolher o pequeno-almoço dela. Ora quer cerelac, ora quer leite frio com banana, ora quer iogurte. Tenho-lhe dito que a granola trabalha bem com o seu intestino preso. Ela garante-me que o melhor é o leite com banana, que ouviu há muito nos videos do youtube que era leite com banana. Nem teimo, só não permito que seja sempre da mesma forma. Que tem que variar. Agora já nem quer bananas. Pedi-lhe que viesse tomar na mesa da cozinha. Por ela, tomava na cama. Tão diferente está ela. Deixou de ser ativa, de ter motivação e é tudo negativo para ela, como bem sabes. Acredito que esteja todos os dias mais um bocadinho a desistir de querer viver. Exceto quando vê televisão. A política é sempre o centro da vida dela, faz disso a vitamina, isso e os noticiários carregados de desgraças e misérias espalhadas no mundo. Falou-me da Le Pen. E quando continuava a contar-me das desgraças e de não ter visto o jogo de Portugal, interrompi-a para lhe dizer que ia por uma máquina a lavar e que me contaria o resto depois. Quando voltei à cozinha, ela já estava na sala, já tinha colocado a taça dos cereais na pia da cozinha e com a sua bengala, tinha ido para a sala. Disse-lhe que ia ao continente buscar o que era necessário e fui ao duche. Quando saí de casa, ela estava animada e só me dizia para levar um chapéu na cabeça e que lhe trouxesse toalhitas.
Almoçamos por volta da uma e meia e já estendi uma máquina de roupa e outra já está a lavar, com os lençóis e as toalhas de mesa e panos de cozinha. Os animais mantêm-se na sombra. As janelas estão abertas a ver se o ar se renova e se a frescura invade a casa. O calor é terrível e espero que os incêndios não invadam as nossas florestas. Enquanto te escrevo tenho um vídeo tibetano de fundo (Pare De Pensar Demais, Flauta De Cura Tibetana, Elimina O Estresse E Libera Melatonina (youtube.com)) .
PS. Vi os teus links no messenger do facebook. Na devida altura, tratarei disso. Não te preocupes comigo. Preocupa-te com tratares-te bem. Recebe um beijinho e um abraço e que a vida te seja mãe, que te saiba nutrir como uma. Da tua amiga, a je.
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