Não vás nesse avião

 



Os sonhos têm sempre em comum algo que se insere, de alguma maneira, num ou em vários pressupostos da realidade. E tanto assim é que chamamos pesadelos aos maus sonhos, bizarros, inadequados, como se disséssemos da sua improvável condição de se tornar impossível, ou como se disséssemos que tal não deveria ser permitido acontecer, porque os sonhos carregam os medos do inconsciente, escondidos, que possuem um corpo de energia que nos repulsa ou atrai, seja consciente ou inconscientemente, e de alguma forma, pressentimos que, em algum nível desvela um pouco do véu, tocando num ponto que nos faz ir dentro, compreender o material, às vezes deja vu, que encontramos nele, da incoerência. 

- Não vás nesse avião, e encontramos em algum grau, alguma da fidelidade contaminada de realidade que vamos vivendo. Devemos vigiar os nossos pensamentos. E depois, temos os sonhos que são o avesso dos pesadelos e mais irreais, porque acontecem de olhos abertos, num estado de fantasia e de contos-de-fadas. Não espalham terrores, somente desejos que dificilmente vingarão, pelo menos dessa forma, com que os sonhamos. Deus tem formas peculiares de entrar no nosso quotidiano e de se denunciar. E isto acontece a todos os níveis. Também neste mundo onírico. 

-Não vás nesse avião, não estava a dormir, porque tinha a noção exata das horas, do corpo na cama, decúbito ventral, a manta de croché mal-arrumada sobre o lençol fino de algodão, o peso da angústia era real e o formigueiro nos dedos, a dor de cabeça latejante da sinusite e outra vez a voz

-Não vás nesse avião, e nem dez minutos volvidos, ainda na mesma posição, cinco e quinze do dia sete, que hoje há-de ser domingo no mundo outra vez, e como pano de fundo, a minha mão segurando o travesseiro, e com a outra tateando o telemóvel na escuridão, e este denunciava a minha incapacidade de voltar a entrar no sono, a mesma voz que me havia dito para não ir nesse avião, voltava a se fazer ouvir, numa pronúncia familiar,

-Não vás nesse avião, e foi a mesma voz que me repetia num eco de túnel, que essa cadela irá presenciar o teu futuro, essa cadela estará no teu futuro, está contigo lá à frente, e eu tento mais uma vez, no escuro do quarto, cerrando os olhos, e visualizando a paz, conciliar um sono que trago, mas que se não quer cumprir. Ergo-me da cama, procuro o caderno e a caneta às escuras, e escrevo

- Não vás nesse avião, e antes de colocar os pés no soalho, tateando os chinelos de dedo, obrigo-me a escrever a seguir, nas linhas de baixo não visíveis, mas deduzidas,

-Essa cadela estará no teu futuro!

E não relutei mais, espreitei a madrugada, quase manhã, fresca, num duche de oxigénio e orvalho, fresca quase fria, e volto a fechar a portada, enquanto oiço os pássaros na velha cerejeira me darem bons dias. Visto o roupão fino, a pele de galinha, satisfeita, acomoda-se ao tecido. 

No quarto ao lado, o meu filho e a namorada, da Jade nem um som. Em frente, a porta do quarto da minha mãe encostada. Na cozinha, ao invés do leite frio, opto por leite quente com café e uma fatia de pão de cereais com manteiga.  O Che leva uma fatia de fiambre e retifico a água da orquídea. Regresso ao quarto e volto ao caderno, agora de portada aberta. 

- Não vás nesse avião, e em baixo, essa cadela está no teu futuro, e tento entender o material que me retirou ao sono conciliador e inconsciente. E nasceu uma clareira na mente, no que diz respeito à cadela, e assumo que preciso controlar o animal que há em mim, ou, por outro lado, ser selvagem o suficiente para defender um ponto de vista. E volto à frase repetida naquela voz familiar,

- Não vás nesse avião, e a clareira vê-se substituída por um curto-circuito, que efetivamente acontece, no quadro elétrico da minha casa e que nenhum eletricista soube identificar, que faz com que as tomadas dos quartos e do wc que serve os quartos deixe de ter tomadas funcionais. Regresso à página

- Não vás nesse avião, as mochilas eram duas. Um saco dos impermeáveis, preto e enorme, os meus pés poisam secos numa estrutura, mas o saco está cheio de mar, entre o saco de cama, em seguida, vejo coletes refletores laranja, vários, despojos acidentais. Ao meu lado, as duas mochilas e o saco preto que eu despejo e o mar volta a crescer dentro dele. Reconheço uma das mochilas, comprei-a em Aldershot ou em Storrington ou em Horsham, numa das muitas lojas de charity cancer research, e o colchão azul bem-acondicionado, também era meu. Valsas na água, numa margem de uma costa. Ficou-me a dúvida. Seria a costa portuguesa? Garrafas plásticas boiavam na superfície, junto com outros destroços. 

- Não vás nesse avião, enquanto ouvia vozes e os seus ecos em corredores subterrâneos, volteava o saco preto a fim de lhe retirar a água em excesso, desistindo logo de seguida, pois os itens dentro do saco voltavam a escoar o líquido para dentro do saco. Na minha lateral, outra pessoa estava ao meu lado e também um navio. Aquilo era um cais num caos. E havia uma aflição constante com a perda da transvia. E lembrei-me de Gijon e de Valladolid. Também nessa altura, houve necessidade de sair de um meio de transporte para ingressar num outro. E outro. E a aflição de saudades urgente, na glote, presa na saudade de perder aquele meio e não vos encontrar.

Os meus pés secos, a minha alma perturbada. Não era a minha vida que estava em risco. A minha angústia era com outros, que outros seriam, quem estava em risco, quem via a vida de pernas para o ar, nesse acidente e os meus olhos procuravam gente, mas que gente era essa, que me eram a mim, que produziam a angústia e o vazio. Voltei ao aviso.

- Não vás nesse avião, e eu depreendo que teria marcado de ir, de o fazer, de estar nesse voo onde as coisas sofreram um volte face, e, mais do que isso, o que vi foi o acidente, como algo futurista, algo que vem e vai trazer mais morte que vida, mais sofrimento que concretização, porque oiço o mar calmo e o seu linguajar, revelando objetos e ocultando perdas, 

- Não vás nesse avião e essa cadela estará no teu futuro, alguém me avisa que não devo voar, invoco Freud, para o voo e para a cadela, e vejo o rosto da Kirie enquanto tomo o meu café na cozinha, e não sei se foi um aviso ou se, mais do que aviso, do que o alerta para não viajar, é antes uma forma de me dizer que os sonhos que carrego têm prazo de se findar e não de se tornarem reais, porque os sonhos podem ser reais ou surreais. Que a cadela pode ser perfeitamente um alerta de que a minha cadela me vai atacar, ou que, eu devo controlar os meus instintos animais, evitar de me tornar irascível com as distintas injustiças, ou, por outro lado de defender-me das injustiças, mostrando o meu lado menos afável, menos acolhedor, menos de mim e mais do que necessito adotar. Defender o meu território, já que impus limites, fronteiras, já que soube dizer basta, talvez seja necessário em mim confrontar com atitude e não só com palavras. 

-Não vás nesse avião, o quadro elétrico desliga o terceiro botão no quadro e tenho a certeza de que o curto começou a acontecer, desde que mudei a bicha do chuveiro. Deixei de ter acesso ao chuveiro normal, o do telefone, e passou a ser o maior, de cima da cápsula que serve o dia-a-dia, exceto quando um de nós se esquece e volta ao chuveiro de mão e aí o quadro pode estar horas e dias sem que nenhuma das tomadas dos quartos e do sanitário possa ser ligado. 

- Não vás nesse avião, e eu receio que me venham dizer que marcaram passagem para ir aqui ou ali, convidando-me a ir, ou a ter de sofrer a sua ida, como se as premonições que carrego fossem mais do que sonhos de aviso próprio, e eu não quero ir nesse avião e talvez fosse bom que alguém avisasse de que esse avião não deveria levantar, sair do hangar, permanecer na oficina, nem pilotos e nem hospedeiros, nada nem ninguém deve seguir nesse voo. Que esse voo deve ser cancelado, extinto, modificado. Que alguém deve cancelar em mim o voo para que me preparei, de mochilas e adereços, de excesso de saudade, que me deve curto-circuitar a tendência de sonhar.

- Não vás, não vou, não saio, não estou, não luto. Aceito e permuto o sonho pelos voos das agências que vão sendo divulgados em páginas de autor, de livros, de muitos livros onde os voos não caem e limitam-se a riscar o céu, nestes corredores aéreos, que vejo ao erguer os olhos ao céu, neste pedaço de mundo onde as viagens são feitas na cama, de olhos abertos e fechados. Não me trago ansiedades, porque os agoras viraram presentes em mim e eu não vou nesse avião. O meu avião não vai descolar, vai ficar no chão deste hangar a que chamo prisão celibatária. E a selvagem que vive em mim vê lutas nos meus iguais e não quer, de todo, hostilizar nem a si e nem aos demais, quer apenas desembrulhar o presente, sem bombas-relógio que detonem ou coloquem em pausa o hoje, que hoje chove e amanhã não sei, que hoje importa e o amanhã por ora foi dispensado, tanto como o passado, nesta nova terça-feira.    

 

 

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