Chernobyl afetivo





Teresinha e o Mãos de Veludo


Se lhe perguntássemos pelo momento mais feliz da sua vida, nessa década de 80, ela recuaria na sua memória, muitos anos atrás, para agarrar dois momentos, apenas. O primeiro acontecera dentro do navio que a levara, a si, aos seus progenitores e haveres para uma mudança radical de vida, que não duraria muito tempo. Até os peixes no aquário os acompanharam. Embora quase mortos, pois ela havia de os retirar do seu habitat natural para os secar numa toalha de felpo e ser retificada pelos progenitores. O segundo momento era em cima de uma árvore, nos Aliados, aquando do 25 de Abril. Todos gritavam a liberdade, como se experimentassem uma palavra proibida e deliciosa. 

A vida nunca fora muito gentil consigo. Por causa da comparação a que recorria. Comparava-se em termos de estrutura familiar com as outras e sentia que perdia. Por causa dessa estrutura disfuncional e pra frentex dos progenitores, nunca soube muito bem, de que forma resolver essa "disfuncionalidade" que lhe assemelhava o seu dia a dia, as suas rotinas, a alimentação e tudo o resto como se pai, mãe, (irmão distante não era contemplado, porque se odiavam mutuamente), e ela própria a uma matilha de lobos, e cada um, em particular, com nicho próprio e doentio. Amava o pai. Que lhe estava próximo e era afetivo. O pai pintava, escrevia nos tempos de ócio e até se vinculava às tertúlias culturais e intelectuais da cidade do Porto, expunha os seus trabalhos e participava de festas regularmente, e como trabalhava oficialmente numa grande fundação artística e literária, ocupava de uma forma itinerante, o contacto com pessoas de outras terras longínquas que adoravam ler. Ela acompanhava-o. A mãe que tinha sido criada com bafos nobres, sem nunca saber dar afeto e sempre reclamando da chuva, do vento, de tudo, na verdade, não se misturava com o povo, essa massa amorfa e malcheirosa que perdia as propriedades pessoais, na amálgama dos transportes públicos e nas praças por onde ela passava, quando se dignava ir trabalhar, porque o mais comum era recorrer aos atestados médicos, para não ter que ver a vida pobre e miserável dos seus subalternos humanos. Ela tentou sempre desacoplar a sua imagem pessoal longe do da sua progenitora. Parecer-se com a sua mãe era algo que não queria. Seria uma espécie de maldição.  Porque a condenava de todas as suas desgraças particulares e mesmo dentro da matilha de lobos. Abandonara a casa, para ir viver um romance longe do companheiro e da filha e só quando um evento maléfico aconteceu com a filha, lhe deu os cinco minutos de desespero consciente e foi ter com a matilha, para resolver o problema da filha. Ela leu (e nunca se lê demais) muito, e foi tardio o diagnóstico da miopia de que o próprio pai já sofria. 

Quando conheci a Teresinha, já usava óculos garrafais, às escondidas, apenas em casa. Conseguiu fazer uma cirurgia para impedir a progressão da dita e começou a usar lentes de contacto. De cor. Porque sempre se tinha achado um patinho feio. Injustamente. Era bonita, mas não conseguia ver isso, muito devido à comparação que usava para perceber as dinâmicas alheias e a sua própria. Tinha os cabelos fortes e cacheados. Algures no sangue do pai, África estava muito presente, nos lábios, no nariz, no cabelo, na cor da pele. À conta dos seus cabelos, o seu irmão chamava-lhe elvis, e ela num gesto de coragem, cuspira-lhe, conseguindo resgatar algum respeito do seu meio-irmão para com ela.

Estudou comigo, marrava e colava-se à vida dos outros. A minha casa foi sempre o poiso de todos os "amigos". Ela tinha usado e abusado dessa condição. Nunca percebi em momento nenhum da sua inveja ou raiva. Existia, a avaliar pelo mal que me fez posteriormente, mas visito esses lugares na memória e não encontro vestígios disso no passado mais antigo. Havia um anjo entre nós. A luz desse anjo ofuscava o seu egoísmo. Não obstante, foi o próprio anjo, antes de partir para outra dimensão que me pôs ao corrente dos verdadeiros sentimentos dela. Essa ela que rejeitava a mãe por ser ela própria o seu espelho fidedigno. 

Podemos considerar irmãos os amigos, e podemos considerar amigos os irmãos. Eu fi-lo e de ambos, falhei. Porque a única amiga que tenho sou eu própria. Depois da partida dos verdadeiros irmãos. 

Teresinha não podia ter filhos. Por motivos físicos. Mas para mim, nós somos ignorantes, Deus não. E sabe o que faz. Ofereci-lhe óvulos para os tratamentos, mas ela nunca me levou a sério. Convidei-a para ser co-madrinha do meu filho. O que aceitou, sendo o seu marido o padrinho legal e, o papel legal e prático de madrinha foi assumido pela única amiga que tive e que partiu já faz uns anos. Que me contou, em forma de aviso, da forma que foi tratada quando a visitou e dos diferendos que teve, à conta da sua doença com a mesma. Hoje, sei que a Cláudia me queria avisar sobre a pretensão dela e sobre o facto de ser alguém que não olhava a meios para atingir fins. 

Apunhalou-me pelas costas. Fria e conscientemente. Tentou "legalmente" me roubar o filho, ainda tinha ele treze anos. Teresinha não sabia o que sentiam as mães, longe dos filhos. A sua própria mãe tinha usado as pessoas como se fossem peças de xadrez. Ela não saberia ser diferente. 

Hoje chamo-lhe o nome da mãe, está claramente identificada com a sua prole feminina. Já lhe perdoei. E até já abracei a criança que ela foi e lhe dei colo pela falta de afeto que viveu, nesse chernobil toxico onde criou raízes. 


Mãos de Veludo

O Mãos de Veludo intercepta esta história, associado também à maldade intrínseca que cresceu porque tinha espaço e tempo oferecido por mim. 

Os "amigos" invadem espaços com a nossa alegria e consentimento. Ele fazia parte, pela extensão do meu irmão, à casa onde morávamos, permanecendo também por fins de semana e semanas inteiras, à semelhança da Teresinha.  

Nunca frequentei os aposentos destes meus "amigos", nunca pernoitei e nunca procurei fazer o que faziam eles na minha habitação. Sempre fui sensível a energias e tinha perceção de danos emocionais e psicológicos com alguma destreza. Entre eles, eu funcionava como um saca-rolhas, que ao tentar perceber as dinâmicas familiares e o foco dos seus problemas, tentava remediar os danos afetivos. Dessa pessoa saca-rolhas, já não me reconheço. Não sou mais essa enseada de náufragos, nem quero saber o que lhes dói e se lhes dói hoje mais ou menos que ontem. Mãos de Veludo é importante, na medida em que "trabalhou" para si próprio - independentemente de não estar a ser fiel aos amigos - 

Ele, por ser amigo da casa, aparecia quando queria e invadia a vida dos outros, colava-se à vida dos outros, tal como Teresinha, por motivos semelhantes. De uma família remediada pelos salários dos filhos e pelas vendas da mãe na Ribeira. Era o filho do meio e tinha um irmão mais velho e uma irmã mais nova. Havia diferença de tratamentos da mãe com o filho mais velho. E isso ficara-lhe na glote a vida toda. Mãos de Veludo tinha sido a alcunha dada pela Teresinha que achava que ele gostava de pôr as mãos em tudo o que mexesse. E a própria Teresinha achava que ele era capaz de vender os pais para ficar bem na vida. Nunca pensei isso, nem mesmo depois de ela o ter dito. E irónica e curiosamente, aqui se encontrava a sua semelhança, entre os dois. Eram capazes de tudo, não olhando a meios para atingir fins. E assim foi, ele em conjunto com a Fraga da Sé, se uniram para conseguir destruir a minha relação com o pai do meu filho, e ela, a Teresinha, anos mais tarde, para me roubar o filho que ainda era menor e que ela achava que podia comprar, graças à sua enorme falta de ética. Ambos sofriam terrivelmente da falta de valores éticos. E de valores emocionais de lealdade e reconhecimento. E a isso, damos nomes técnicos de diagnóstico, mas é tudo para explicar a falta de afetos humanos e a sua importância e saúde no desenvolvimento infantil humano.

Ela é formada em jornalismo, mas mãe não. Assim, deixou-se formar pelas suas limitações. Ele é um artista desde sempre, mas pai não. Eles não simpatizavam um com o outro. Talvez por serem tão semelhantes. Hoje, graças à inimizade em comum, eu, são amigos. E Deus escreve direito por linhas tortas. Porque há seres que, se fossem responsáveis pela educação de menores, levariam as mesmas dores e mágoas, a falta de ética, os mesmos limites afetivos - o chernobil afetivo - a corromper e limitar a primeira infância. 

Somos ancorados pelos primeiros anos de vida numa vinculação de progenitores, parentes e rede de amigos e se não tivermos a sensibilidade para diagnosticar as dores dos outros, as nossas próprias dores, dificilmente chegaremos ao conhecimento do outro. Acrescentar que apesar de acreditar na Lei do Retorno, do Karma, da Causa e do efeito, acredito na perfeição das estruturas evolutivas do pensamento humano e do propósito que carregamos, um ou vários na vida dos outros. E cada melhoria que façamos em nós, ela afeta e melhora o bem-estar geral.  Detox. E que, no final das contas, qualquer conta, o que importa é aprender o que a vida nos oferece e com as lições, nos tornarmos melhores, visualizando a gestalt do coletivo e não o indivíduo que faz as suas escolhas, baseadas no seu meio. O que mais importa é o todo e se esse todo se beneficiar destas dores alheias, um dos propósitos se cumpre, individualmente, e fará parte do propósito coletivo. Se humanos fossem fáceis de entender, eram mais descartáveis, tal como os eletrodomésticos e as máquinas de inteligência artificial que trazem manual de instruções. O nosso manual de instruções para lidar com os outros é escutar o nosso coração, a nossa intuição não falha!



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