Tour para um fado
O tempo tinha parado. Não havia nenhum contador, cronómetro a disciplinar os segundos, na trajetória da prisão humana. O processo não foi repentino, tanto que podia sentir o lastro das eras numa imobilidade peculiar, como nos grandes navios que enfrentam todo o tipo de águas, com ênfase nas turbulentas. O carrocel de emoções estancara junto com os calendários naquele aquietar de infinitude. Sentia o relógio interno no peito subir-me à glote, as veias debitando as emoções de calma e solenidade. A solidão e a saudade, ambas companheiras de vivências, mantinham-se fiéis a mim.
Se te busquei por tempo indeterminado, ali, comigo, já só vivias na memória da porta escrita pretérito e eu, obediente e voluntariosa, desejava continuar a viver, sem empurrões, sem pressas, sem olhares desviados para trás ou ansiando um futuro que se manifestaria na altura devida. Ali estava eu. Só. Os cortinados balanceando, dando-me conta que os pássaros habitam as cidades e se empoleiram nos ramos apenas para descansar. E o voo da liberdade assumia-se, sem se atropelar de intenções ou conjeturas. Alisei as penas, as últimas. Despedi-me dos lenços kleenex.
Olhei-os a todos, um por um, todos fragmentos e partes de mim, já incorporados nas células. Sim, já os carregava muito para além das molduras, dos vidros cortados esquematicamente, das suas formas geométricas, eles eram vida dentro da vida que possuía no corpo. Não mais necessitava, como até ali, de os procurar nas paredes, de os convocar ao espaço. Eles eram eu e, eu eles. Mais de cinquenta formas humanas me preenchiam interiormente todo o adn, esses filões onde os registos akásticos formavam o compêndio de compreensão além da antroposofia, da teosofia, da própria filosofia do pensamento humano. Havia formas complementares de emoções, sentimentos e sensações que estavam associadas a outros reinos que não só o humano. E eu completava-me em todos eles.
Olhei para a agenda na minha frente. Sem tempos regrados, mas os eventos existiam e sucediam-se no tempo chamado agora. Plano B. Ou o fado. Optei pelo fado e registei-me. Não havia nada como a liberdade de calcorrear sons e espaços antigos com um olhar inteiramente novo. Optaria por uma refeição leve. Uma sobremesa fresca. Terminaria com a cafeína e o vinho doce vintage de um Porto do qual sentia saudades, mais do que de tudo o resto.
Saí para a rua, o Rui Veloso comigo, ao volante, aumentei o volume e dirigi-me, primeiro à bilheteria e passaria no Palácio de Cristal, para queimar a intermitência de um evento a outro. Inventava para mim um espaço onde a crisálida se preparara para abandonar o casulo. Aparquei. Corri os olhos pela praça de Carlos Alberto. Tudo o que era antigo e novo se mesclavam e eu própria antiga e nova me inteirava, absorvendo os cheiros das ruas, das livrarias e alfarrabistas, dos coffee shops e da intensidade de gentes e cores que deambulavam, habitando a cidade. Eu era parte integrante e viva nesse jogo onde as peças se iam encaixando. Inteira. Pulsante. Depois de um sumo de laranja natural, por detrás dos meus óculos de sol e da última revista da Blitz, olhei o mostrador do telemóvel. Estava no tempo de fazer a transferência de lugar. O carro no aparcamento. Entrei no uber e pedi que me levasse ao fado. O senhor, novo e solicito, tentando fazer graça, disse-me que toda a cidade era fado. Anuí e emendei-o: o país todo é fado. E ele, num sotaque espanhol, gracejando ainda, perguntou-me se não preferia outro tipo de música, mais alegre, como os flamencos, os sambas ou as kizombas. Para encurtar a conversa, disse-lhe que sim, que preferia tudo no mundo da música, que era eclética, mas precisava voltar ao fado. O trânsito caótico traduzia o que me lembrava da cidade, buzinas e luzes, a intermitência das formas em movimento, as roupas ondulando com gente dentro. A pressa e a lentidão valsando num conjunto que me enchia as medidas. Atravessamos a cidade para Gaia pela ponte e os meus olhos prenderam-se às águas escuras prateadas pelas sombras de luzes dos edifícios da Ribeira. E quem vai a Gaia ou foge a correr ou fica engaiolada. Pensei na tia Carmen. O pensamento bailou entre sinapses. Ouviria fado com ela ao meu lado. Em planos separados, porém, de afetos unidos.
A refeição não foi tão leve quanto acreditei, a sobremesa mantive-a calórica e fresca. Ouviam-se os talheres e as conversas em surdina. Uma música de fundo abafando os conteúdos, os sorrisos e gargalhadas, os amigos que chegavam atrasados, os semblantes de fim de semana, que é aquele tempo de altas expectativas que ali não variavam entre o descanso e a continuação dele. Era pura distração e cavaqueira. À medida que os cálices e os talheres foram abrandando, as luzes foram diminuindo. Até ao apagão apoteótico, já sem banda sonora de fundo. A voz grave de um cavalheiro dos seus cinquenta anos a entoar na sala, voz de radialista que me fez recordar o António Sérgio na sua Hora do Lobo. E depois o fado encheu a sala, as conversas foram completamente emudecidas quando as guitarras tomaram conta do ambiente. Sorvi o resto do café e preparei-me para aveludar o trago de Vinho do Porto Calem. Senti o perfume Estivalia, bem ao meu lado. A Carmencita estava ali, comigo, tal como me tinha apetecido. Deixei-me levar pelo fado. E o fado não se explica, sente-se. Sentia-me inteira e livre. A minha cidade tinha-me feito tanta falta. Começava naquela noite a matar todas as saudades que estavam guardadas. Despojando-me de emoções presas por séculos de isolamento. Os meus sentidos estavam reunidos consensualmente. Eu era a cidade, o fado, a música e o agora. Meu amor, tu foste comigo, mesmo não estando ao lado. Por estares dentro. Ocupando o espaço de todos os fantasmas idos, mais vivo que o vinho do Porto, que o fado, que as gentes, que a respiração do rio na cidade. As lágrimas rolaram-me pelas faces, na mistura da escuridão e dos perfis alheios. A integração na condição humana das artes não nos altera personalidade, cresce no sentido original definido previamente. A tia estava lá, embora etérea e tu, mantinhas-te dentro. Como o mar que me inunda a todos os momentos. Amanhã será dia de Centros comerciais e afazeres mundanos. Hoje é este agora, onde te beijo na fimbria de um fado, de onde espantei a sombria montanha do isolamento glaciar.
Onde: Rua de Valente Perfeito, 275, Gaia.
Próximo ao Jardim do Morro.
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