Where is my mind?

 



Queria ter asas. Esse era o meu maior sonho. Sabia como se voava, já mesmo tinha voado antes, recordava-me da sensação, e depois disso, nunca me havia abandonado.

A manifestação do sonho das asas demorou, tardou, secularizou, marçou, até que veio abril e, eu que nasci nele, que renasço em todos eles, dei por mim a abrir aquelas aveludadas sombras de outras vivências, de cores esfusiantes, bailando com chispas de fogo cravados na memória, obedecendo em movimento aos meus impulsos de experimentador, primeiro lenta e demoradamente, depois em espaços curtos, de golpes que tentavam acompanhar vontades que estavam adormecidas em mim, risquei o ar, arrisquei o salto e voei para o parapeito da janela pequena. Admirei o interior que se tornara escuro e procurei decorar os rasgos de luz que a janela deixava antever. Antes, eram riscos somente, nesgas de quentura que entravam, como que enrubescidas, agora, os olhos voltaram-se para o exterior e vi duas palmeiras alinhadas na direção do meu olhar. Também vi flores, muitas, e postes mais altos que quase se atreviam a rasgar as nuvens. Voltei a abrir as asas e não demorei no exercício de as experimentar na horizontal, batendo, subindo, erguendo para um ponto mais alto, até olhar de cima e sentir o meu corpo completamente entregue naquela dança que tanto almejara. Pontos de verde e de lavanda forte, fragmentos de azul-escuro e margaridas no cume da colina. Tudo o que sentia agora poderia reportar-se e, quiçá, até confundir-se, com o que me recordava antes, a saudade de saber o que era ser feliz. Ser feliz estava suspenso dentro do meu peito, levado a cabo, na prática, de duas asas aladas que me deixavam zonzo, porém, embriagado de alegria. 

Ao acordar, tentei estender os apêndices esvoaçantes na horizontal, mas a sensação de enjoo tornou-se tão forte que olhei em volta. O cheiro do sangue, característico e forte tomava conta do lugar e não vi colinas nem tapetes de relvado irregular, nem o céu azul, nem os veios dos aviões desenhados. Quando esfreguei os olhos, tinha, novamente, duas mãos, com dedos brancos, numa pele seca, as penas de veludo foram substituídas por cabelos grossos e rasos e doíam-me os membros inferiores, os músculos. O colchão, o penico, o lençol desfeito e a grade da janela golpearam-me de realidade. Estava preso naquela pocilga, rodeado de metal e graffitis nas paredes, havia provas da falta de liberdade, esculpidos na irregularidade, por unhas e extremidades de pratos metálicos. O cheiro do sangue misturava-se ao chumbo. Havia um lavabo velho e completamente irregular e obsoleto na estranheza daqueles metros. Estava só e o silêncio falava-me, se eu escutasse, dizendo-me que a vida era feita de absurdos momentos que entremeavam o raio da lucidez. Que a loucura cavalgava as mentes, mas sobretudo a inconsciência coletiva e que éramos fragmentos milenares de todos os antecedentes a nós. Funcionávamos, talvez, como apêndices sacralizados, mantendo a operação de constância das mais variadas maneiras. A liberdade era um sonho. Que só poderia materializar as suas formas concretas através de uma união mente-espírito que traduzisse as claras intenções comuns. A telepatia oferecia essa condição, a da transparência. Somos, então, nós e não eu, que temos o sonho comum da independência, da defesa de direitos humanos, da constância nos apelos, na eficácia de atitudes pacíficas, na prova possível e na demonstração da mesma, através de argumentos impossíveis de anular ou redundar para a meia dúzia de mentes que se não coadunassem com o sonho comum. Esse, de experimentar a humanidade, da forma mais harmoniosa possível. Os nossos ilustres antecessores deixaram códigos e símbolos, mensagens para serem interpretadas, mensagens essas que produziriam os resultados que todos, invariavelmente, teríamos acesso, uma vez galgados os planos estratégicos da mente divina e suprema. 

O voo era individual até à união e reunião. Fez-se, novamente, luz. Não artificial, mas de outra fonte, da original. A liberdade era uma forma de viver, uma escolha associada à desconstrução de padrões aprendidos, do carrossel do self, e aquela parte mais interna a que a mente pode aceder, quando não está refém de condições e nem imposições sociais era uma condição sine qua non para atingir a totalidade e a verdade da questão que encontra a resposta na saída do labirinto:

- Qual o fundamento da vida?

Cumprir-se. Na essência. Viver. Semear e colher.

E lembrei-me da Liza. Na pergunta feita à mãe, pouco tempo antes desta se despedir para um voo final:

-Qual a ideia que tem sobre o além? E ao que esta respondeu, bizarramente, na opinião da filha, naquele momento em que deitou fora as palavras (como se as repudiasse, engano que preferimos, do mundo ilusório que coexiste a toda a hora na matéria) - Não é da minha conta!

Podia ser que quisesse somente dizer: - Porque tenho de saber isso? Ou então, não quero saber! Na verdade, a mente recusa-se à constatação, porque sabe estar a mexer em alas invisíveis, nas quais o domínio humano não tem acesso, exceto pela meditação e afins. Para a matéria compete a matéria, daí o tempo. No além, na essência, esse tempo-espaço não compreende questões, nem sequer respostas. Viver o agora é o implícito a quem está próximo de partir, gozando a materialidade a que se propôs. Objetivamente, agora chama-se viver. A maioria de nós que sofre de prisão mental, não vive, efetivamente, sobrevive aos efeitos da materialidade. Eu queria voar. Viver. Expandir asas e mente. E dei-me conta, outra vez, que as grades eram a oportunidade para me dar conta que era livre. Que me importava as escolhas do social? Importa é a minha escolha e ela havia sido tomada. O voo. Quando peguei no lenço, ainda tinha mãos, com dedos, mas quando me sentei na beirada da janela, já eram garras, penas e bico que tinha. Era um falcão. E preferi exercer a minha escolha pelo voo e, alegremente, me desprendi da forma humana. 

Comentários

Mensagens populares