A insanidade do sofrimento e a minha avó Bina

 






O sofrimento humano é infinitamente mais avassalador que uma pandemia. As glicínias podem ser a imagem perfeita de felicidade, se atentarmos ao tempo que inventamos para calendarizar tudo. Agora, esta visão da ramada, do arbusto, do seu odor faz-me feliz. Sofrer é a forma cirúrgica de acordar.

E se eu tivesse que escolher um adjetivo adequado à causa da sua proliferação, diria que é vil, mas existem outros igualmente sinónimos, como a maldade, a negligência, a cumplicidade de circunstâncias e atores. Dele, do sofrimento, podemos retirar o ouro da alma humana. O que de melhor e pior nos define. Mas nem só. Depois de ter assistido ao filme de Camille Claudel, a escultora, enclausurada pela sua própria família nuclear, mãe, irmã e irmão, dou por mim a conjeturar na tremenda infelicidade de se nascer dentro de uma sociedade profundamente desumana, desatenta e desestruturada. Não obstante a pujante figura da guerra, como pano de fundo a esculpir o devido engaiolamento num asilo, depois de uma deceção amorosa, desta escultora com August Rodin, parceiro e competidor, a vulnerabilidade foi o mote usado pelos parentes para atirarem Camille Claudel para um asilo prisional, do qual nunca viria a escapar. Que, de acordo com o discurso do seu irmão, famoso poeta Paul Claudel, Camille estava protegida não só da guerra, mas, sobretudo e principalmente do afeto embotado, contagioso de toda a família. Para além do próprio irmão, nunca recebeu outra visita até à sua morte. Vinte e nove anos exilada entre as mais variadas síndromes e perturbações humanas, de cariz diversa, afetivas, mentais, sociais, paradoxais. Uma sociedade que não compreende as suas sombras, jamais disfrutará da sua luminosidade e progresso civilizacional. Só o amor pode transmutar. Todos ficam surdos, preferindo o medo e a ignorância, a matrix, o jogo, a ambição e as vitórias.

Faltou uma unha pequena para que o meu parto não tivesse ocorrido num hospital psiquiátrico. As dores da minha mãe iniciaram no seu turno das oito às treze horas. As águas rebentaram ainda nesse turno. Não havia sensibilidade humana sequer para se dizer: estou para ter o bebé. Ao contrário. Ainda se ofendiam os seres humanos por estarem doentes ou com menos capacidade para desempenhar o exercício profissional. O ser humano necessita despir-se das suas ilusões e enfrentar a vida sem jogos, sem máscaras, sem expectativas sobre os outros. Os outros só importam quando falamos do coletivo, quando agregam ao todo. Porque individualmente, temos que tratar é da nossa vida, dos nossos valores, defender as nossas causas e esquecer os outros. Cada qual no seu percurso, nas suas encruzilhadas, nos seus "agoras" e nas suas "próximas vezes". Sejamos objetivos no que traçamos. Adeus aos medos, adeus aos receios de não correspondermos ou cabermos no que os outros querem para nós. Honestidade, resiliência e foco em ti. Tu és sumamente importante, para ti. Tu és o que importa no teu mundo. Foca-te em ti. A guerra que os outros fazem é deles. Ignora. Percorre as linhas que traçaste e escolhe as tuas batalhas e cautela. Existirão sempre seres humanos. Que são fracos. Que são feios e que na sua imperfeição, tentam arranjar bodes expiatórios para as suas inglórias. Para projetarem em ti o que são eles, afinal. Não olhes para trás. Este agora és tu, é teu, agarra-o e transforma-o. Usa as energias dos inimigos para te tornares mais tu ainda. 

Depois de ter absorvido os dias perfeitos pela ótica singular de Wim Wanders, ocorre-me o agora e a próxima vez, agora sofremos, da próxima vez, quem sabe, possamos olhar o mundo da perspetiva do oceano, um mar imenso, não pertencente a ninguém, senão à terra, que se molda na sua força, nas suas marés, nos caprichos, como se fossem amantes, o sofrimento e a felicidade caminham de mãos dadas, intercalados pela forma peculiar, específica do olhar do agora e do olhar da próxima vez. A dor, esse agora, molda-nos e a recompensa talvez seja da próxima vez, a possibilidade contemplada. O minimalismo apraz-me cada dia mais, não é de agora, é muito anterior. A simplicidade é o que almejo. Observando de longe a vida, diria que quando sorri a alguém, recai sobre outro alguém, como o peso de uma nuvem escura. Por outras palavras, a felicidade de alguém parece sempre ser desenhada em cima da infelicidade de outrem. Triste humanidade. O lapso da civilização. A inversão do ter pelo ser. O jogo vai mudar. Segurem-se, os dados estão lançados há muitos anos atrás. 

Os partos são a morte do agora noutro lado, o princípio da próxima vez, num outro plano. Se antes me angustiava ao ver um ser humano infeliz, agora, dou por mim a olhá-lo pela perspetiva simplista das lições. Cada um de nós fez as suas escolhas antes do agora. Agora é a prova, o teste. E se antes, a minha felicidade se fazia depois da dos outros, agora a minha é que me importa, muito antes da próxima vez, agora mesmo. Agora, não somos mais os mesmos, não desenhamos arco iris, não procuramos rasgar as expectativas com a realidade sonhada. Não. Agora passou a ser sempre, e sempre agora, sempre amanhã, sempre todos os dias, eu comigo e com os comigos de mim. Avó Bina, hoje pus-te duas velas de morango a arder, hoje coloquei uma jarra cheia de glicínias a perfumar a cozinha, que hei-de trazer mais logo para o quarto e dar-te um beijinho e um abraço. Sofreste muito por amor. Que sejas feliz agora, de onde estás e me vês. Feliz aniversário Vó Bina. Amo-te.

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