Knockin' On Heavens Door


Cheguei tarde e todos se alinhavam num perímetro ambíguo, de uma fila de gente compacta, rasgavam-se linhas humanas. Parecia-me que havia cornos de elefante no meio, mas sem os seus corpos amontoados, apenas gentes se amontoavam no início, para logo mais atrás, separados por esses grandes ossos bicudos de marfim, no chão, as vestes desfraldadas, mas vento nenhum. Sussurros sim. E gritos. Esfreguei os olhos. Sentia ter chegado tarde, mas se me perguntasse a mim a que evento, não saberia responder. Nunca se estaria preparada para algo semelhante. O cheiro de fumo e de sangue misturava-se ao odor da terra queimada. Cheirava a cadáveres. Tentei perceber que filas eram aquelas e quem as definia, quem as iniciava, porque tudo era confuso e silenciado? 

Vi areão erguido por grandes pás, presas, misturado com terra argilosa, mais húmida. O enxofre parecia estar presente. Aproximei-me de um grupo de pessoas, umas vinte ou talvez mais. Seguravam as suas próprias mãos na cabeça, arrastando os cabelos, outras apertavam os gritos com os dedos atando os lábios, como querendo calar o horror. Abraços e soluços. Olhei o chão e vi muitos buracos abertos, algumas pedras no meio da terra revolvida e uns metros mais à frente, de novo, montes de terra erguida, com as pás e sacholas, seguras pela humidade do chão, como bandeiras de navios de piratas. Quis chegar-me à frente de um dos buracos onde havia menos gente, mas quase caí. O burburinho mantinha-se e eu olhava, estupefacta os olhos das pessoas em volta, arregalados, desacreditados do espetáculo que só não me era visível pela espessura e altitude da terra amontoada. Quis falar, mas a minha voz presa à garganta também ficara perdida, naquela visão extrema. Corpos de crianças, pernas, braços, pescoços, sujos e rostos de olhos abertos, num terror de fim de vida. O que acontecera ali, tão perto do centro de uma vila muito movimentada, num país em desenvolvimento, não estava desenhado em thriller nenhum que tivesse visto. Nenhum realizador ousara uma visão tão dantesca da desumanidade no século em que estamos. O grupo mais próximo a mim começou a recuperar a fala, e o choro misturava-se com a linguagem, deformando-a, alterando a mensagem. Nada do que se via ali fazia sentido. Vi duas ou três camaras de televisão poisados, entre sacos e carros, as pessoas curvavam-se para o sentido inverso às valas, como se tal virar de costas pudesse apagar os indícios do massacre. 
Haviam passado quatro horas e os carros aglomeraram-se como podiam e ainda havia muitos a chegar e a espreitarem e os gritos e soluços tornaram-se a linguagem comum. Não havia ninguém capaz de noticiar ou dar informações coerentes e os discursos mais intentados tornavam-se impercetíveis pelo horror das visões do aglomerado de buracos e de terra e o dia escurecia e cada vez mais gente vagueava, pessoas amontoadas e sentadas no chão e nos capots dos veículos e eu consegui, finalmente, abrir a janela do coupet. A garrafa plástica estava quase vazia quando a meti à boca, mas foi o suficiente para me sentir afogar, como se um tapume daquela terra suja de sangue estivesse, como uma rolha, a impedir o líquido de me descer pela garganta. 
Chegar tarde. Não era um pesadelo, mais uma vez. Era real, terrível, terrivelmente real. Corpos sadios e sujos encostados uns aos outros, atirados uns sobre os outros, com areia e terra nos olhos e narizes, nas bocas, nas orelhas, nos cabelos. Uma chacina como nunca vira antes, nem ouvira falar. Não eram adultos. Contaram setenta e sete corpos. No dia seguinte aquela língua de parque, a pouco mais de três quilómetros da escola, na curva que era a saída de vila, onde havia árvores e arbustos de proteção, tinham sido retirados, as máquinas aguardavam ordens para saber se poderiam abrir mais buracos, mas a população impediu-os de prosseguir. Setenta e três corpos, sendo que cinco dos corpos eram de adultos, professores. Dizia-se que teriam que ser, ao todo, se a conta estivesse certa, cento e quatorze corpos, entre professores, contínuos e alunos. Setenta e sete haviam sido descobertos em três valas comuns. Onde estavam os outros? Geradores foram trazidos. Naquela noite, a escuridão não tomaria conta do espaço, a noite fazia-se alvorada e o frio nem se sentia. O terror tolhia o rosto dos mais fortes. Em três dias, se procuraram vilas e cidades, autocarros e comboios, jardins públicos, bibliotecas, sinais que pudessem indiciar, mas nada levaria aquele pedaço de inferno. No museu, vários ajuntamentos e altercações, dizia-se por ali, que não tinham dado entrada naquele dia. Que a diretora, tendo dado conta do não comparecimento, houvera ligado para a escola e ninguém atendera e que tinha dado o devido desconto, por ser tempo quente, de fins de semana prolongados e de turistas e de muito tráfico nas ruas, a empilhar os semáforos, a engarrafar as pessoas nos quilómetros que as separavam do centro de serviços entre uma cidade e uma vila. Descontos que seriam entendíveis numa outra situação que não esta, da ausência de tanta gente miúda num passeio escolar. 

A notícia do desaparecimento não batia certo, mas a gravidade não tinha sido declarada, por causa de uma visita regular a um museu, camionetas contratadas para o evento, nas cadernetas escolares, a assinatura dos pais, permitindo que tal se realizava com as suas permissões. Para o evento, arranjariam um lanche, um agasalho na mochila, um bloco de notas e um boné para o dia. Sexta às sete da manhã. As indicações haviam sido claras e dadas a todos os encarregados de educação e teriam que chegar mais cedo, para a chamada dos alunos, antes de entrarem nas camionetas. A responsabilidade dos professores e dos funcionários, a previsão de chegada ao final do dia de sexta. O país fora assolado no final de sexta, já perto da meia-noite, que fossem procuradas as camionetas, os alunos, que fosse inquirida a empresa de aluguer, os respetivos motoristas, os percursos alternativos de viagem. Cento e quatorze pessoas de uma escola, sem contar com os motoristas das quatro camionetas disponibilizadas para o evento, não poderiam sumir do nada, sem deixar pistas. Não havia nada, nada, nenhuma indicação, nenhuma altercação, nenhuma chamada, nada revelaria tal desfecho. As máquinas paradas, os homens circulavam, agitados, com os capacetes de luzes no alto, como os mineiros, organizando a investida para descobrirem os corpos que faltavam. Pelas contas oficiais, quarenta e um corpos permaneciam desaparecidos. A empresa não recebera nenhum comunicado dos quatro motoristas, ao contrário do que sempre fora acordado, aquando de visitas escolares. Tudo saía do esquema. 
Na sexta-feira anterior, conferiram o horário de chegada, à escola, da partida das camionetas para o museu e piquenique, no início daquela primavera, o regresso apontava a chegada à escola pelas 19.30h. Tolerância de meia hora, portanto, pelas dezanove e quinze já havia pais, avós, encarregados de educação, aguardando, estacionados e pacíficos, entrando e saindo dos carros, fumando cigarros, telefonando, aguardando. O país soube pelas vinte e duas horas que deveria procurar sinais na cidade onde a visita ocorrera, as camionetas e as suas matrículas, as licenças e os que haviam organizado o evento. O país começara a ser passado a pente fino, escrutinando desde a presidência escolar à do museu, dos transportes, dos pais e os retratos das crianças começaram a passar nos écrans televisivos, na internet, outros países já passavam nos noticiários e fora deles, comunicados urgentes. Alguém tinha que prestar contas sobre o que se passara ali, naquele vilarejo calmo, pacífico e ordenado. O mundo, naqueles dias, transformara-se numa bola negra onde se faziam questões e não se encontravam respostas para as dores lancinantes nas mentes, nos corações, na existência física, tão desumana. Na crueldade real, deplorável e grotesca. Caí ajoelhada no chão e gritei sem pudor, dando murros na terra húmida e a luz da madrugada continuava a romper e a mostrar-nos que o pesadelo era contínuo e interminável. Tal como a escuridão do sucedido ali.

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