Come chocolates metafísicos
Quatro adultos sentados numa mesa, partilhando uma refeição, falando do tempo quente, dos danos colaterais das eleições nos States, na Venezuela, do Sporting ter perdido por quatro a três, com o FCP sem Pinto da Costa, de uma mulher em prisão domiciliária por violência doméstica. De novos casos de pedofilia. Da Ucrânia, do Trump, dos atletas medalhados e da Pedofilia. Adultos com crianças doentes a contaminarem crianças inocentes que serão adultos infelizes e frustrados. A correr mal, capazes de eles próprios acabarem a fazer o mesmo a outras crianças, não importando para o caso se são os filhos, os amigos, os sobrinhos, os vizinhos, os outros. E depois de ter recordado um caso sem nomes, me terem lembrado da ética profissional, por outro lado, eu tive que lembrar que a ética profissional é discutir casos com nomes de pessoas, não situações e formas de evitá-las. E lá estava uma jovem recém-licenciada, a trabalhar com crianças, que quer proteger as crianças, mas evoca o pudor como a quinta emenda constitucional, dizendo que é um assunto pesado para uma refeição. Quantos quilos seremos capazes de aguentar por refeição? Qual é o peso ideal para se discutir assuntos na mesa da sala, da cozinha, do restaurante, do sofá, qual é o peso licenciado para que os assuntos sejam falados? E para confirmar as minhas suspeitas e concluir o assunto, perguntei: Pode-se sempre identificar alguns sinais que evidenciam que uma criança está a ser molestada? É necessário sinalizar...
O pudor subiu novamente à mesa, desta vez mais acalorado e eu percebi que não importa o que cada um tenta esconder. Torna-se visível aos que sabem ler dores. E guardei cautelosamente o silêncio feito de gritos mudos e estabeleci um limite, uma fronteira. Impreparada para seguir adiante. A refeição ficou deveras pesada, não pelos temas trazidos à conversa, nada disso, mas pelos pruridos detetados ali mesmo, diagnosticados a um olho sensível que não só lê a dor, mas os comportamentos que falam muito melhor que as bocas e os olhos. Guardei a conclusão para mim. Partilho-a. É necessário falar de tudo. De tudo o que provoca dores e sorrisos. É muito importante o diálogo. A ausência dele cria distâncias e incompreensões que promovem a doença, o sofrimento humano, a autoestima, ataca o sistema de defesa, os mecanismos de coping, rompe qualquer tentativa de cooperação humana. Promove a solidão, o desinteresse, exponencia a negligência, abre atalhos perigosos que afeta todas as sociedades humanas. Independe da cor da pele, do estrato social, do status, da faixa etária, do género, da nação. Define-nos e acompanha-nos até à reta final.
-Não, você não entenderia nada! Precisaria passar por tudo isto, para que pudesse avaliar o que se se sente perante tal dilema. As dores, tal como os dentes, tal como os primeiros fonemas, as gargalhadas dobradas, podem chegar cedo e, se for esse o caso, dificilmente se arredam da nossa vida, perdurando, às vezes, para além da memória dos nossos dentes de leite e dos caninos, dos nossos casamentos, dos nossos divórcios, das alegrias, dos falecidos, dos diários das mamãs embevecidas, das avós tristes, perdurando para além de nós. Porque nos define e molda a memória que deixamos antes de partir, permanecendo num álbum de fotos, ou nas recordações, nas conversas revisitadas sobre este e aquele, que deus o tenha, essa imagem preservada ou já esbatida dos que privaram connosco.
O dilema do sofrimento humano. Precisamos sofrer para saber apreciar os seus danos, a magnitude das suas consequências, doer dentro, de dentro para fora, mas há quem diga que primeiro dói cá fora. Mentira, dói sempre dentro. Diz-nos o comportamentalismo que assim é. Não. Basta-nos desenvolver a empatia, o interesse pelo outro, pelo bem-estar alheio. Olhar de observar e não de curiosidade pela vida dos outros. Compreender por dentro. A empatia é um órgão que nos cresce ao entendermos que a felicidade do outro é saudável e contagiosa e que a sua tristeza e mágoa o exila para um sítio inacessível onde sequer podemos auxiliar. Nos deixa impotentes e nos contagia pela negativa. O dispositivo dispara e é sempre oriundo de dentro. Venha a dor do sofrimento psicológico, físico, emocional. Os estilhaços dela podem ficar a ecoar em alguma frente ou em todas, em alguma geração ou então, em todas, como as velhas crenças e as superstições contra os gatos pretos. Tal como um incêndio que incinera e vai tomando conta de tudo nas suas envolvências. Por isso, se deve criar uma espécie de perímetro, uma circunferência limitante, para que não expanda, para que não tome conta de tudo. Assim, seria possível, não vê, seria possível estancar a partir daí, do primeiro impacto, da primeira chispa de lume, a dor, por colunas! Nenhuma criança merece nascer com uma conjuntura que promove incêndios e não previne riscos. Como fazê-lo? Ela não via a resposta surgir clara, mas sabia que ela existia. Existe essa forma de estancamento, um exercício redentor para todas as crianças humanas. E que somos nós todos? Todos crianças feridas, adoecidas pelos inúmeros mecanismos da dor que um dia chegaram e nos rebentaram com os sonhos, dinamitaram tudo em volta. Podermos sonhar. Mesmo com as dores todas metidas nos bolsos, a pingar pelos lenços, a empurrar-nos contra as paredes e os cadafalsos onde nos esgueiramos, fugindo de nós. Quando, de alguma maneira, podemos proteger os sonhos, a dor é como o lixo dos maremotos, que arrasta casas, pedaços de madeira, destroços do que somos e do que não mais seremos por inteiro. Havia fundamentalistas e defensores do sofrimento, sempre houve. Promotores até. Mas não me digam que, depois de terem tido a visão abrangente de tudo o que as dores, o sofrimento alheio provoca, não me defendam a dor como o fino ouro do endurance e da resistência! Não defendam as guerras e nem usem a paz para a justificarem. São só deambulações da matéria, quando esta perde o fio do espírito. O espírito não quer dor. Bem sabe, o espírito, muito além da matéria, vem cumprir o preenchimento para a evolução. E esta, senhor, não vem através da mensurabilidade do ápice de cada esgar no facis humano.
Abri o baú imensas vezes, a minha caixa de Pandora. Que a dor me fez curvaturas e ovulações por dentro, obviamente que sim. Que provocou furacões e levantou questões às quais nunca obtive respostas e as que vieram, traziam um endereço oculto, mas eu sabia que eram minhas. Porque vieram inteiramente respondendo ao que perguntava. Outras, nem por isso. Às dores, dirijo o meu olhar altaneiro, dizendo-lhes da minha gratidão por se mostrarem, não por terem enraizado esta revolta contra o argumento, contra os autores que provocam tais magnitudes em nós. Em mim! Se as podia dispensar? Que raio de pergunta é esta? Eu agradecia que as crianças do mundo inteiro, nós enquanto humanidade não precisássemos sangrar. Mas eis-nos, a beirar uma nova guerra, eis-nos a eleger caminhos tortuosos, a emprenhar de sonhos e a fazer partos de bonecas quebradas, corações e pescoços comprometidos pela falta de compromisso, pela ignorância, pela falta de maturidade, pela leviandade e tantas ades, tantas ansias, tantas ites, que dificilmente poderíamos recolher no mesmo baú. O pior não foram as dores que eu pari, foi não haver nelas qualquer serventia para retificar as dores de outras crianças, os danos são os que carrego para todo o lado, onde ninguém para além de mim, aprende com elas, para evitar nascerem de novo em corpos alheios, em casas alheias, em países alheios a elas. Falo comigo, sem mascarar qualquer revolta ou desculpa, sem evitar entornar as lágrimas. Sem receio de nada, porque me permiti de algum tempo a esta parte, dar-lhes voz, conteúdo, expressão, e a coerência é o ato misericordioso de as compreender, de mesmo fraturadas, as abraçar, mesmo sem beleza nenhuma, as amar, porque foram companheiras presentes esta vida toda. As bonecas de trapo, os cavalos de croché e de farrapos foram companhias suaves, as dores não, foram companheiras agressivas, fizeram-se presentes o tempo inteiro, não importava se trazia um vestido novo, se num aniversário, se a brincar com outros, se numa entrevista de trabalho, se uma reunião de amigos ou de família, sempre se fizeram presentes. E não têm termo de comparação com as dores que os outros ocultavam de mim, com a máscara que se carrega para se disfarçar, a maquiagem que se coloca para se tornar invisível, nada disso importa. Elas marcam presença por fora, mas sobretudo por dentro. Animais vorazes, esfomeados, que, tantas vezes, não aceitam a reconstrução, menos a desconstrução, não aceitam sem indagar, um sorriso novo, a energia de recomeços. Em cada dor existe uma ampulheta. Não para determinar o desfecho dela, mas para o nosso, como se fosse uma armadilha, uma bomba-relógio, uma mina de campo, um dispositor que, na aproximação da alegria entra em curto-circuito, um alarme só ouvido por nós, lá dentro, sempre dentro, que nos promete revivê-la até ao expoente. Um terramoto interno que cresce na medida do nosso sorriso ou esperança renovada. Vil cada dor, cada fantasma que nos recorda da nossa mortalidade, mas sobretudo da mortalidade dos outros, os que foram portos e âncoras ou que não o foram, quando deveriam ter sido.
Nesse baú, onde me sobram esgares antigos, sensações de orfandade, ridículas formas de medo, observo a sua convivência com as outras crianças externas a mim e saberia nomear a cada uma, não porque me foram reveladas, mas porque aprendi a ler dores. Em todas as línguas, a dor deve ser comunicada, sinalizada, circunscrita, abolida. Abolidas, sim senhores. Depois de digeridas, de tratadas, de estancadas. E fazemos isso a partir de uma memória adoecida (mas podemos prevenir antes da memória adoecer, quem sabe é a mais bonita maneira de dizer estou aqui), a memória que nos acompanha. Aquela a quem demos colo, a que colocámos penso rápido e que tentamos a sua convalescença. Somos pais e tutores das nossas dores e das dores alheias. Produzimos doenças comportamentais como lixo, doenças afetivas, como se nem soubéssemos da sua existência, inimigos cultivados no engano, na ingenuidade, na falta de informação, na inversão de valores, na vergonha, na cumplicidade, na preguiça de encarar, olhando o rosto do conhecimento no sentido da cobardia. O tecido social está repleto disso. Dessa matéria densa que promete muito mais guerras do que coragem para as enfrentar, quanto mais combater. Que encerra em si sementes daninhas que hão-de proliferar nos campos humanos como os de Auschwitz, para nunca mais esquecer, como as bombas de Hiroshima e Nagasaki, os danos hão-de fazer fila até aos próximos séculos de hospitalidade humana, da mortandade voluntária, recursivamente, provocando a dor nas gerações vindouras. Tenho para mim que a ignorância é a maior concorrente da inteligência e vence esta pelo cansaço e apatia, pela negligência e desinteresse no coletivo. E lembro-me com bastante frequência de autores como Bertolt Brecht, Thomas Hobbes, Zygmunt Baumann, Krishnamurti, Schopenhauer, Pessoa, Drummond de Andrade, Lao Zi, Giacomo Leopardi e tantos outros que não caberiam na minha memória e menos ainda nesta página que nos contaram da falta de sucesso na irradicação da dor humana pela prevalência de todo o egoísmo humano e pela ausência de empatia. Assim nos é demonstrado pela história.
As crianças que carregamos estão cansadas, mas não extintas. Ainda dá tempo de evitar os incêndios vizinhos, ainda dá tempo de circunscrever e delimitar as áreas circundantes, de ainda tentar combater contágios e multiplicações, ainda dá tempo de evitarmos os sacrifícios e as coroas de espinhos nas crianças novas. O que tem de ser abolido, meus senhores, é a hipocrisia, o pudor, os pruridos, a vergonha, o medo, o roubo, a violência gratuita, o que precisamos extirpar das sociedades humanas é a ausência do diálogo e a segregação, a perseguição e o fanatismo, as religiões e as guerras. É necessário promover a justiça, a verdade e o diálogo. Seriam grandes passos para a evolução humana. Mas tudo isso é pesado e a malta gosta pouco de conversas desconfortáveis, que abalam o suposto equilíbrio. Nada de bulir. As soluções são pesadas. Foi determinado que no século XXI ainda era cedo para assuntos pesados! A Santa Hipocrisia!
Come chocolates pequena, (antidepressivos e ansiolíticos) que não há mais metafísica no mundo senão a dos chocolates! Fechem os olhos, cerrem os pulsos e calem os gritos. Nada de mostrar fraquezas, temos todos um calvário pesado para levar, todos, mesmo as crianças que garantimos amar. Que nada! Temos é que proteger as crianças dos adultos! E isso é uma maleita segregada em todas as vertentes. Qual é mesmo o lobby que protege os pedófilos? Os narcisistas? Os criminosos? Ah, porra! Já sei, é o lobby do santo poder. Que venha um deus dos outros permitir então!
Aqui, precisamos crescer. A dor das nossas crianças internas está a adoecer o mundo! Falem do sofrimento! Não sejam púdicos, carago, sejam metafísicos!
As crianças precisam ser informadas da completude humana coberta de sombras e de luz. O diálogo não pode ser segregado, nem os malefícios dos cigarros, dos homens, da fast food, do stress, dos relacionamentos tóxicos, do bullying e dos porquês de tudo isto. Elas vão entender, podem acreditar. E não se rasga a inocência delas com a verdade!
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