Cozinhava-se o amor em lume brando
Nessa altura, o tempo descia lento, fazendo as ribeiras mansas, o pão saía do forno com sabor a trigo colhido, os homens caminhavam devagar, tinham maneiras, outra educação, nada se deitava fora, os abraços saboreavam-se debaixo das linhas do céu, com Deus a abençoar e a inspirar os corações espigados. O amor pingava nas assadeiras e todos eram servidos. No tempo dos meus ancestrais. A noite passada dormi quatro horas. Sonhei com a avó Bina e até acordei muito bem-disposta. Ela fará anos a vinte e nove deste mês. Antes dela, o meu rapaz mais velho. O meu irmão depois dela. No tempo da minha avó paterna, o alimento dos deuses era servido sempre na mesa, saboreado com brandura, apreciado devidamente. A minha avó servia o amor como ninguém.
Hoje, os tempos são outros. Não sou a Albina Ferreira da Silva Guedes, sou a Cristina Guedes. Armadilho o retângulo onde moro, com vidros e arame farpado, em sítios vulneráveis, por dentro, para me certificar que quem entrar vai cair. Cismei que quero ver a cara dos inimigos. A quem dei o meu amor, a minha amizade, a minha ajuda, a minha atenção, a minha preocupação, o meu parco dinheiro, a minha ingenuidade, as minhas refeições, as minhas mobílias, pratos, e restantes trecos, o meu precioso coração e tempo, a todos e a qualquer um que tente invadir a minha privacidade, terá que me olhar nos olhos. Pedi para instalarem, à semelhança do vizinho de baixo, câmaras baratas, ele para vigiar a mãe durante o dia nos campos, no caso dela cair, eu para apanhar chacais. Os homens que me colocaram as ditas, disseram-me que eu devia ter uma arma. Uma pistola, uma espingarda, qualquer coisa que faça barulho e assuste os maus. E uns holofotes que ligassem na aproximação de corpos quentes, como já tive. Não concordei. Disse-lhes que sou uma arma, porque sou marcial. Sorriram. Não sei se entenderam. Mas se se lembrarem do plano marcial, chegam lá. E a escuridão protege-me, deixa-me em modo defesa. Tudo na mais completa escuridão. Agora deu-me pra isto: apreciar a escuridão e saborear a sobrevivência. O vizinho do lado tenta romper pela lateral, invadindo o terreno do otorrinolaringologista, para vir espreitar as minhas janelas traseiras. As fingidas pessoas, vestidas de gente que se arrastam para o meu território, que tentam derrubar a minha privacidade! Estão avisados pelo meu olhar e pelo meu silêncio. Sou uma velha guerreira, guardada nas profundezas, a quem ensinaram a trazer à superfície. Hoje à superfície, não há vestígios de doçura, da velha ternura, da antiga empatia, nada, nada, tudo dentro, cá fora é este soldado vigilante que guarda a noite dos seus, eu e a cadela, somos ambas da mesma espécie, guardamos a nossa noite das carpideiras e dos exércitos do mal, protegendo os nossos, somos iguais. Não há qualquer diferença entre nós. Exceto que estou vacinada e ela não. Contra as bactérias e contra os humanos fingidos de boas pessoas. Antes de as ver, já lhes vejo a máscara, já lhes meço as intenções, chacais de outra vida que se querem pendurar na minha energia, para me verem cair. E a legião dos meus, dos que marcham sem corpo humano sopram-me tantas versões de todos eles, que até lhes conheço as sombras e os maneirismos, os cálculos e os trapezismos do capeta. E sim, estou de tocaia e é a mim que me querem e é a mim que me vão ver. E eu só os deixo poisar. Trazem ocultas intenções nos seus papéis, na pele, no cheiro. O amor esvai-se como o prato da fome na barriga dos indigestos, como as viscosidades do inverno nesta estação. Foi-se. Jaz morto e arrefece.
É no lusco-fusco que me refresco, no duche frio, que ao invés de me provocar arrepios de tortura, me faz colocar nos sapatos desses eternos desconhecidos, despidos de bondade. É lá que canto e que choro, que oro e que me lavo das coisas peneiradas do dia, das maldades dos vizinhos que estanco com sal e alecrim, também é no lusco-fusco que revisito a velha caixa de sapatos, recheado de rostos saudosos, de momentos de oiro. Sou uma crisálida ao lusco-fusco. Mas quando a noite se instala, volta a guerreira, o outro lado da paz, que acompanho com livros, filmes de entretenimento e café. Eternos companheiros das minhas noites de coruja. E nos raios da manhã, vou descalça, para o meu primeiro banho frio. Consternada. O de olhar em volta e de confirmar que só nas árvores e flores, nos animais e muros de pedra está Deus e a sua enorme legião de anjos, a erguer uma barreira de luz à nossa volta, para que ainda possa sentir harmonia, para que ainda me ligue ao coração, para que descanse na beleza natural de todos os filhos árvores que criei neste pedaço de sombras refrescantes, nesta estação dos frutos.
Hoje desci ao pomar, eu e a Kirie. Os cães ladravam em todas as direções, as ambulâncias com as suas campainhas alarmantes rompiam os tímpanos, na direção do final do meu retângulo, persistentemente. Não era incêndio. Foi, com toda a certeza acidente e tem que ter sido grave ou em cadeia, porque eram imensas ambulâncias. Levei um alguidar de metal, para trazer as maçãs e alguns pêssegos. Vi as ameixoeiras, á árvore dos dióspiros e dos marmelos carregados e ainda verdes, os ramos como braços cediam ao peso da fruta. De repente, a Kirie desatou a ladrar agressivamente, indo em direção à minha casa. Na parte traseira, nos limites do terreno, onde a rede termina, lá estava o vizinho carpideiro, em tronco nu e a fingir que não estava a ameaçar a cadela com as mãos. Fui ver. Não para ver, mas para ser vista. Para que saiba que sim, que sei das suas andanças em terreno privado, tal como estou preparada para defender esta terra do lado de cá da rede. Pedi silêncio à Kirie. Ela entende tudo e depois disse-lhe. Não atacas. Só se te fizer mal, ao entrar. Se não te fizer mal, só ladras, só me chamas. Eu farei o resto. Mas não sou eu. Eu não farei nada. O chão e a rede me defenderão. Devo ter sido mineira noutros tempos. Depois dirigi-me para a churrasqueira onde renovei a água aos animais, lavei a fruta apanhada. E enquanto pingava o excesso, apanhei a última máquina de roupa, devidamente dobrada. Aqueço as sobras do almoço, enquanto as maçãs e o pão de alho assam no forno. Não há amor visível. Nem aparente, para os demais. Só premonição e acompanha com cautela. Hoje cozinho o amor dentro, tão dentro que, quem olhe para mim, nunca o possa pressentir, mas por fora, lavro a paz com os punhos cerrados, pronta para ser um soldado de intervenção. E antes do lusco-fusco, o jantar é servido e degustado. E depois as maçãs assadas com mel e duas gotas de licor são servidas quase frias antes do café da noite. E ei-la por aqui, depois da cozinha arrumada. E de lavrar as minhas intenções e avisos, para que, no caso de haver danos, não inventarem que eu sou dançarina, mas nunca dancei. Engano deles. Eu sou dançarina, porque sempre dancei. Na minha imaginação, já percorri o mundo a dançar ao som das músicas lavradas por mentes brilhantes. Eu sou a ilha e o mar que a sustenta. Avó Bina, espero que o cheiro das maçãs assadas tenha chegado ao céu, mas já cozeram outras tantas que vou guardar no frigorífico. Amanhã, hei-de saboreá-las ao pequeno-almoço, a pensar em ti. Amo-te.
Comentários