Lição difícil de aprender



Da tal questão da humanidade.
Acredito que este tema tenha saído em 1990, talvez um pouco antes, mas só me deparei com ele muito mais tarde.
Creio que nos deparámos com as coisas e as pessoas nas alturas próprias. Como uma bofetada que te acorda, como uma luz na escuridão. Levei cinquenta e cinco anos a aprender que as sombras dos outros são as sombras de todos, com rostos diferentes, mas que podemos escolher o que alimentar, enquanto por cá andamos. Doer dói a todos. Menos aos sociopatas, porque esses perdem a memória de humanidade e a tal capacidade de "entrarem" no lugar dos outros. 
Numa conversa com uma pessoa familiar próxima, tive oportunidade de, "in loco" ter uma imagem aproximada da figura, e perdoe-se a redundância, que os outros tinham de mim. E através dos olhos dele, pude ver a inveja, mascarada de simpatia, se é que isso é possível. Acreditem, é. Podes passar a vida a conviver com alguém, nunca saberás o que transporta dentro, sobretudo no que diz respeito a ti. E podes sentir que sim, essa pessoa é o teu espelho. Na verdade, existem dois tipos de espelho: o das tuas crenças e sonhos, e do outro lado, dos teus temores e traumas. Aquilo que estiveres a ressoar cativará os personagens que se prendem com isso. Mas não és essa imagem. Isso são projeções. Claro, há muitas explicações e teorias, de Jung, Freud, passando por Rogers e todos os estudiosos de humanidade, somos sempre mais, além, acima, dentro. Não viemos para repetir padrões. Não há evolução na repetição. A vida perde o sentido nas comparações. 
Ontem, ao observar duas crias novas da gata Minie, ambas escuras como ela, pude ver que embora iguais na cor do pelo, dos olhos, na formusura e perfeição, uma delas era meiga e voluntária ao mimo e a outra muito agressiva, que se revoltava, inclusive contra o próprio irmão e que isso contribuiu para uma convulsão que a doce cria teve de seguida a essa agressão, e que a mãe, lambendo as duas de igual forma, se mantinha no meio, entre ambas, protegendo  os dois lados, mas com a perceção de maternidade, decidiu cuidar da mais frágil. Vi ainda que a mais agressiva, através do medo e da revolta trazia resultados visíveis e desfavoráveis para o trio. Imaginei aquela cria agressiva como sendo um de nós, sujeito às mais diversas desumanidades e especulações do ambiente em que nos movemos e pude confirmar que, os mais vulneráveis se tornam fortes e os fortes enfraquecem, face ao meio. Tudo depende de como lidamos com as adversidades. Que contabilizadas no todo, adoecem ou equilibram, ou seja, tudo interdepende da forma como vemos o mundo fora de nós, mas sobretudo de como reagimos a ele. 
Não há mais branqueamento de situações, quando despertamos. Não passamos o pano, pretendendo a realidade da cor ilusória que escolhemos. Para crescermos, enquanto humanidade, temos que começar pela mirada na porra do espelho. Os danos que provocamos na nossa passagem e nos vínculos que criamos e alimentamos, com esse meio ambiente, revelam exatamente quem somos e mais ainda, o que é esperado de nós e todas as ferramentas que possuímos para nos melhorarmos. A desumanidade só vence em alguns quadrantes. Quando acordamos, o sonho fica atrás, a ilusão de perfeição passa a ser dispensável e, se nos atrevermos a olhar os destroços dessas mesmas imagens que outrora, consistiram na forma da nossa realidade, com transparência e coragem, damos conta que foram, afinal, as peles que vestimos um dia e que agora, com esta nova consciência, deixamos atrás. Não sejamos românticos com os dados objetivos. Nada do que fomos existe mais em nós, são somente plasmas ultrapassados, destituídos de anima, a que nos agarramos para manter uma forma de ser e de agir, claramente ultrapassadas pela vida, que se atreveu a rasgar-nos o véu oculto da realidade. A realidade não necessita de dogmas. E se os dados estão lançados, parafraseando Sartre, a próxima jogada é a liberdade de ser diferente. Sendo que ser igual é involuir. A morte é a libertação do sujeito para assumir outra identidade, outra forma de percecionar o que antes desembocou na enseada dos erros. Errare humanum est. 
Pegamos na parca bagagem do que acreditamos precisar e caminhamos, para além dos destroços de quem fomos. O luto existe, lá atrás, mas na nossa frente está uma nova realidade que pode não ter todas as cores do arco-íris, mas, certamente, terá a cor de uma alba dimensão. Desconhecida ainda, mas nova. Uma vez sabendo, não podemos fingir que não soubemos. E apaziguamos as dores, na caminhada, a leveza auxilia-nos a perceber que os pactos connosco são os mais importantes, os que devem ser preservados, eles e as escolhas que se abrirão, mediante o nosso compromisso e fidelidade a nós mesmos. Nasces sozinho. Morres sozinho. Porque não caminhar da mesma forma?
De nenhum fruto, queiras só metade. Outorgo a Torga, nessa liberdade de escolhas para atingir objetivos. E os outros são os outros. Cada um de nós colherá o que semeou. Eu continuo a ser amor incondicional. Sempre fui teimosa. Essa parte velha de mim fica atrás. O que permanece dela, ainda em mim, são os seus frutos, os do meu estio. Que são a minha identidade, num mundo que se atreveu a criar hostilidades no terreno fértil de mim. O que colhem de mim, eis que o semearam. O que colho de vós, eis a minha colheita. Lição aprendida. 

Comentários

Mensagens populares