Morrer no intervalo do Eclipse

 







Não posso. Sei que me entendes. Não sei, não posso, não quero e não vou. Não vou esquecer-te, não vou obedecer a Saturno, não vou desobedecer ao meu coração. Ele me governa. Assim nasci, assim será, meu querido. Lutar pelo esquecimento é resistir. Eu não sou o Manuel Alegre. Mas reitero o seu não a saturno. E deixo o meu amor nas mãos do futuro.

Enquanto Hades se opõe ao Sol, numa quadratura também com Neptuno, enquanto a Lua em conjunção perfeita com Lilith faz um belo trígono a Úrano, lá em Touro, e enquanto eu me mantenho na espera do meu guru, Júpiter e Saturno que foi ao rio Douro pescar da água doce-amarga, vou limpando o passado. E eu disse que serias o primeiro a morrer. E a morte não existe. E tu és eterno e sempre sobejarás neste plano material, onde humanos e bestas se debatem por um lugar ao Sol, perdidos nas suas lutas diárias de bens de primeira necessidade e matam por bens superficiais, eu limpo a casa interna e externa. Hoje, já parti mais loiça. Atirei-a contra as redes de proteção. A cada peça partida, dizia, num ritual próprio, vais tarde, já tiveste a tua serventia ou a tua inutilidade, ocupando espaços que me são necessários à paz mental e à organização que o meu stellium em virgem afirma, eu afirmo por ele, pimba, esta era uma peça bonita, feita de arte, será transformada. Quem sabe, daqui a muitos, muitos anos, alguém as encontre e possa falar da história, do artesão, da sua utilidade na vida daqueles que pereceram. As coisas parecem sobreviver aos corpos que lutam para ter coisas. E volto às caixas, às roupas inúteis, aos pedaços de materialidade que me são pesados, mas muito mais que isso, inúteis. Não penso no dia de amanhã, no que se refere a coisas. Nunca me deixei deslumbrar por elas. Fogos fátuos que se projetam como ambições temporais. Mochos que me observam, pombas, rolas, aves que são livres, mais do que eu, borboletas livres de serem e de voarem. E se o meu pensamento tem asas, o meu amor que me leva a ti, é todo envergado de liberdade de expressão. Tu és a minha casa interna. As moiras vieram falar-me de noite, vieram contar-me do impacto em alguns humanos, da minha expressividade e ousadia em todas as línguas, dizer-me que muitos, muito além da curiosidade, me continuam a desejar mal. Que os ignore. As moiras vieram soprar-me que serei punida pela forma de ser mas ao invés de me pedirem cautelas e caldos de galinha, frisaram que devo continuar a minha caminhada, sem olhar atrás, aos lados. Sempre em frente. E que em frente, terei uma leva de invejosos, os de sempre, a tentarem que as suas arapucas funcionem. Que terei que fazer frente, que me posicionar. Que essa sou eu. E que me leve sempre dentro e fora, sem receios que amealhei durante os anos em que dando afago aos demónios, lambia sozinha as minhas feridas. Quais feridas? As minhas, o meu jeito de viver, rebelde e oposto ao verniz simulado que as cobras usam para se aproximarem das presas. Perdi o medo, a vergonha, perdi o que considerava certo e errado, as crenças e a forma de ceder aos outros. Hoje sou o oráculo vigilante de mim. Hoje sou a solitária, a fera que se deixa embriagar nas noites claras, com o mesmo sonho por concluir, com a mesma força impulsionada a ele. Dirijo-me onde a minha alma me pede. Obedeço a mim. Não há instituições e nem autoridades que me impedem de calcorrear os percursos que evitei. Quando resistimos, é sabido, persistem as coisas em nós. E é isso que direi a saturno, tão logo chegue com o seu peixe que não vou fritar. Direi não a saturno. E saturno não me vai falar, nem exigir, antes vai ter que me ouvir. Lhe direi que sei ao que vem, lhe direi que enfrentei demónios e que os venci, sem espadas, sem sangue, sem votos secretos ou maldições. Colho o que semeei. Lhe direi, depois de o abraçar, que agora chegou o meu tempo de ceifa. Que permitirei a mim mesma abrir o portão que ajudei a fechar. Que será um corpo comigo, o meu próprio, mas comigo caminham muitas mil almas, caminham ancestrais e o futuro será desenhado e construído pela observação clara e sem subterfúgios dos erros do passado que se não vão repetir. Eu tenho um presente para Saturno, não obstante o dele para mim. Eu vesti-me de presente. Neptuno não é tão feio como parece, numa primeira abordagem. Plutão, esse Hades que temeis, temei-o então, se semeaste o mal. Temei-o, talvez o receio que tenhais dele se regenere, começando a semear boas sementes. Não espereis milagres se vos portastes como bestas.  A estrela que me guia me pede para calar. Mercúrio terá que aguardar o desenlace. Quanto a ti, és o meu espelho. O que me deixa a pensar que sou um belíssimo ser humano, que tem cumprido o que se espera, selvagem e irreverente, cooperadora e valente. Rasgo todas as maldições que nos haveis feito. Sou a mesma. Coração puro, alma alinhada ao divino. Esse caminho que trago nas veias foi escolhido lá em cima. E a manifestação antiga refere, tal como o que está em cima, está em baixo, tal como está em baixo, está em cima. Esse princípio regulador não se altera. Não é uma lei humana que podeis conspurcar! Abandono a luta de mim para comigo. Agora só me vereis lutar por ideais. Não patrocino o desperdício de energia. Sou paz e vida e amor, que é o mesmo que dizer que sou morte nos intervalos. Invoco Zeca, Tordo, Ary dos Santos, Sérgio Godinho, Natália Correia, Zé Mário Branco, Fausto, Nuno Júdice, Alegre, Sophia, Pedro Barroso, Janita, Vitorino, Variações e todos os que prestaram vassalagem à liberdade da vida e da poesia. Vivos e mortos marcham a favor da justiça que se há-de fazer. Pois que venha o futuro, que venha o entulho, que venha, então, que eu sou padeira de aljubarrota, que me mostrarei inteira, disponível para o bem e para o mal, o alvo da vossa chacota. Que venha Abril, então, que venha numa canção que rasgue o vosso sono, a vossa corrupção. Que eu não sou de morrer, sou de renascer. Que floresçam os ideais, como poesia, os cravos e as cravinas e multipliquem os beirais onde se fazem os ninhos, onde bradem os sinos e se grite nas praças do povo, sem pruridos, que os gritos estremeçam a vossa consciência, que a liberdade cresça da flor que há-de vingar dos poetas. E frutificar no amor aos demais. Não se combate o amor. Que ele é a força motriz, a floração. E eu vim ser jardineira em noites de lua cheia, vim ser contaminação do amor neste deserto de humanidade. E se vos quereis que explique, eu alimento-me nos eixos, dos eclipses. 

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