Morrer no Intervalo II

 




Às vezes, raras vezes, acordo contigo no sonho. O que acontece com imensa proficuidade (lavrando a fé-força da vida) e constância é adormecer com o sonho onde tu estás inteiro e pleno, como sempre foste. Um homem muito para além do norte, muito para além do douro, de uma doçura e beleza delirante. Hoje o sonho acordou-me e depois de me levantar para ver se a casa ainda estava no mesmo lugar, se o corpo, este que trago, ainda era o meu que abraçaste, voltei a deitar-me na posição fetal e a adormecer com lágrimas. Chamei o pai, pai, paizinho, mas o sono não pôde secá-las antes de ele chegar.  Primeiro veio o sono, esse doce elixir, quase tão doce como tu eras em mim, que me arrebatou a esta nuvem negra de ainda ser vivente num corpo cada vez mais cansado e ausente da três dê. E quando voltei a acordar, onze e vinte e dois, mais uma vez, calcei carapins e fui para a cozinha. Nem quis pensar em nada, que vou eu tomar de pequeno-almoço ou que dia era hoje. Porque os dias passaram a ser intermitências que se agarram às horas até se diluírem, um atrás do outro, no esquecimento. Abri a pequena porta do móvel de lambarices do Tomás, onde guardo as coisas dele e o chá, o café solúvel e arranquei de lá um donut. Prático, redondo e com o buraco do meio. O donut é o meu reflexo, o mundo com um grande buraco, um hiato, um vazio que só tu preenches. Liguei a máquina do café, substituí a cápsula e ao invés da chávena pequena, coloquei uma caneca de barro. Há coisas que nunca mudam em mim, a vontade de café, que pode estar quente, morno, frio, áspero, mas que continua a dar-me um prazer que não gosto de dispensar. Podendo. Espreitei a minha mãe, antes de me sentar na mesa da cozinha. Dorme ainda, pela noite e sempre tarde, sempre com dificuldade em conciliar o espírito ao sono. Não lhe abri a janela. Vim ao quarto buscar o telemóvel, que é onde leio as notícias e às vezes os mails. O donut esvaziou-se na minha boca em quatro mordidas. Finou-se. O café fui sorvendo aos poucos, como com os livros, ansiando saber o depois e demorando para que o prazer não finde. Quase todos os dias, o Filipe me envia poesia, a dos dias dele, é através da poesia e da lírica que mantenho raros contactos com o mundo exterior. Não falo de queixumes, não falo de sonhos, só do dia-a-dia que se arruma nas rimas, versejado entre possibilidades e impossibilidades. Hoje passou a ser domingo. Sim, porque domingo tem que ter uma pérola dentro, não podem ser só horas que se colam a nós, como se ao fazê-lo, pudessem perdurar mais e mais. E eu só conheço por dentro os dias que perduram quando são os que guardo na memória, as minhas pérolas guardo-as nos dias que são história, onde estás tu, onde estão os meus queridos viriato, zira, oh minha zira, não te deixes ir abaixo, come biscoitos como eu, chupa rebuçados e deixa os cigarros, zira, que saudades viriato, e a cláudia, cristina não sejas tão romântica, a vida é pateticamente agressiva, mas sou como tu, quando se esgota o amor, ficamos a sobrar neste mundo, temos que voar para o outro, eu cá continuo nas minhas viagens astrais, atrás dos ninhos nas árvores, onde a fernanda surge do nada com aquele conselho sempre pronto e arredondado pelo amor de se ser mãe, com cuidados disto e daquilo, não na terra do cadaval mas na do céu, onde os anjos brincam com ela, rasgando sorrisos ternos e dizendo-lhe que os seus olhos de amêndoa azuis já se não enterram nas pálpebras mais nas preocupações pelos outros, onde a avó bina continua a querer-me feliz, e ao lado dela o avô rodrigo me diz, vês filha, como eu tinha razão, tu vês que és linda por dentro e por fora, e onde o meu irmão no colo do meu pai continua de cachos de trigo, emoldurados pelo olhar de mel a sorrir-me, deus, tanta luz, tanta, e onde a testa do meu pai não tem um único vinco, exceto quando sorri, gargalhando, para que me alegre, nos dias que guardo da carmen flor que me fez companhia todos os dias em que estive na terra de soalhães, sempre aflita, sempre solicita, sempre mãe, ela que nunca quis ser mãe, e saber que os meus mortos são, enfim  tudo o que está vivo em mim, mais vivo que nunca, as minhas pérolas preciosas na ostra da vida. Uma verdadeira legião de pérolas e eu que pensava que nunca veria as pérolas e o meu cordão de pérolas nesta vida é o que me deram eles, que são um cordão enorme que chega ao céu nas noites longas, de lua fugidia e misteriosa. Hoje o Filipe enviou-me uma pérola que guardo na memória de tão bela é. Partilho-a nesta página para que se não perca no rascunho cada vez mais estéril dos meus dias e noites. Do António Borges Coelho, nas suas crónicas e discursos no vermelho do Chinita: 

Invocação a Trás-Os-Montes

(...)

Os pequenos não podem nada...

Mas quem arroteou a montanha?

Quem conquistou os impérios?

Quem foi o operário e o arquitecto

que rasgou as montanhas do

Douro, que as cobriu de socalcos

e lhes abriu a ferro de monte as

covas e o espaço por onde se

agarra a vinha, numa obra 

gigantesca que lembra as 

Pirâmides e a Muralha da China?

(diário de Lisboa, 1968, nas crónicas e discursos da Caminho, 2024, 

resistente antifascista comunista preso e um dos historiadores maiores de Portugal. É-lhe rendida homenagem este fim de semana, na festa do Avante. 

E quando leio esta Invocação, fico comovida até às entranhas, pela alma e pelo coração, porque me faz ver o que guardo do douro, uma imagem fiel e porque me leva a ele, na revisitação litúrgica do douro. Não é fantasia delirante! Deus lá em cima e o homem pequeno cá em baixo são ambos o mesmo, tecelões da sua sorte, com muita arte pelo meio, esteio humanitário, e essa força não é braçal ou de vassalagem, mas inspiração e engenho, é uma força-fé que constrói o impensável. Nós somos realmente o que escrevemos, livros abertos a expor a alma que levamos dentro e, por fora, a parir poesia como deuses do olimpo! Que grande cepa de poetas Deus preparou para a Lusíada colheita! Com este rendilhado de vinhas do Douro, até dos penedos erguemos tronos. E são estes momentos de beleza que experimentei depois do donut, enquanto saboreava o meu café e a maldita da nicotina. Depois os gatos e os cães, os meus amados amigos diários, amigos do peito, amigos de sempre, que me aguardam para os mimos e as refeições, multiplicando sorrisos em mim, como se combatessem o meu coração espigado com mel. Hoje é domingo, porque o café vem à boca enquanto as vinhas do douro se entrelaçam dentro dos meus olhos, saudosa da sua beleza, saudosa da natureza a que pertenço e não alcanço, refém e hostil de mim mesma, neste buraco, neste hiato onde habito o corpo que ainda me arrasta às tarefas, às obrigações de ser gente, de ser filha e de ser mãe da minha mãe, de ser um ser pensante e ermita que dedica os dias a tentar esquecer, a combater o amor, pode isso ser? como se não soubesse que o amor não se combate, não se faz frente, que isso não é ser coerente. E diante de mim, ainda, desfilam os teus braços e os penedos e o amor, meu amor, fica e edifica, permanece e enaltece, endurece e se mantém na minha boca, não sabendo morrer. Pode lá ser, pedir ao penedo que deixe as suas qualidades internas, que deixe de ser forte e resistente, que deixe de ser mineral combatente, que deixe enfim esse estado e mude para ser água da nascente? Tal como as penedias, como o basalto, tal como as vinhas do douro, os montes mais altos, continuas rompendo sulcos e só colhes o que semeaste. Para ti, neste domingo, guardo a pérola que és, o meu amor maduro. 

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