Tempestade generalizada no menu
Como em todas as receitas, ponha água quanto baste.
Chove. Ainda não é chuva, amores. É moinha. A chuva que governa as festas populares sanjoaninas, diz-se que molha tolos, mas é mentira, molha todos, só não os molha na mesma medida. Não é ainda chover, senão simulacro, uma pequena dor reumática no sacro. É a preparação para a derradeira tempestade que vai cair sobre a terra. Adocicar as almas cuja esperança esteja combalida. Comprometida por tantos enganos e injustiças. Vai tempestear como nunca antes, como em todos os finais de ciclos de uma grande era, tempos não vividos pelos hoje vivos. Que isto não é viver, é martírio, é sobreviver ao feio escrutínio da bicheza, sem valores, sem caracter, de uma total ganância e estreiteza de raciocínio, na sóbria promiscuidade, que pede licença para se fazer passar por pessoa educada. Oiço os trovões ao longe, acabaram-se as romarias e os foguetórios, as procissões vaidosas e os malandros oratórios, os envelopes por debaixo da mesa e venham os supositórios, que com certeza, serão adequados a tão grande maleita. A hipocrisia já não desfila, corre para o matadouro, em massa. Da abastança de uns, da devassa de meia dúzia se produz a desgraça. Vai ao forno. Ainda não foi, mas já se está a aprontar, as assadeiras de manteiga derretida, preparadas para o evento. Talvez quando chegue, venha lavar tudo, o perene e o circunstancial, as calçadas de óleo queimado, os campos de secura extrema, a leviandade maligna das potestades que ainda se ancoram, como os vampiros do Zeca, agarrados aos vulneráveis. As visgas dos porcos de Orwell que ainda insistem na manjedoura, a soltura, a disenteria, a limpeza dos cofres do povo, a aleivosia dos mesmos de sempre, que tem de haver gente que se erga, que corte, que faça a extrema rutura com a má sorte, a coragem e a ventura de trazer alegria aos que sustentam as alarvidades. Que chova, que troveje, que lampeje, que se revelem todos os segredos obscuros escondidos, que se anunciem as verdades mais inverosímeis, que todos sejamos testemunhas e culpados da sujeira terrena, onde se cometem atrocidades e se vulgarizam, na normalização esperada pelos sanguinários. Gostam de cabidela, não é? O próximo pato que venha sem penas, foie gras e ovas de esturjão, à custa do povo tanso. Chove e quando chover a sério, a nossa alma bailará, subirá plena e a alegria dos sobreviventes abundará e será contagiante, que os justos poderão cantar hinos e os rios voltarão a sussurrar aos amantes, como sempre, como no princípio dos tempos, como dantes. Que rompam o breu, que desçam dos céus deuses e profanos, que marchem todos os humanos para a justiça necessária. Que de enganos e desenganos, se caiam padres e franciscanos, pastores e fariseus romanos, que se despejem, que se despojem, que os umbrais são negros e os mansos são servos, são serenos e aguardam a tempestade como a rendição suave do seu merecimento. Junte-se um cravinho às carnes. Que desçam músicos e acrobatas, escribas e tecnocratas, que se reescrevam leis e que essas não prescrevam, aos pedófilos e aos farsolas, químicas gaiolas de tratamento vitalício, e atas que atestem que a humanidade já atingiu ápices, que o tempo é de fresa. Que rompam maremotos e vulcões, incêndios nos grandes grupos económicos, nos detentores do poder, que sejam bem duros os golpes. De forma a dar exemplo, para a não repetição. Que venham rufares de tambor, venham camionetas de excursão e trens a vapor, que se transpire a lucidez e o amor, mas que esta chuva bendita que cairá aflita, a romper mentiras, seja a que se não pode interromper, a dita luz da claridade, que há muito se contrafaz de verdade com o avesso, há muito que a ilusão engana a civilização com máscaras de entrudo, com pingas baratas, escondendo os devassos o carrancudo interno que lhes conduz os passos e nos revolve as entranhas a nós, bodes expiatórios, destes alarves desumanos! Chova dinamite com açúcar mascavado, que se dissolva a maledicência dessas línguas de perversão, que os raios estremeçam estruturas dessa fundação maldita, dessa função expedita que reina dentro dos povoados impios. Que a fonte bendita separe o trigo do joio, a seda da chita, a bênção do agoiro, que vingue a certeza da nossa colheita, nós que viemos destruir as convenções e os oportunismos, os totalitarismos e enchumaços de ombros da arrogância dos espertos e dos seus tachos! Chove, mas ninguém poderá demover, nem comover de podre o que está previsto. Não há nenhum imprevisto. Não há nada mais bem temperado que uma colheita solene. Vá, abre a boca, pendure no colo o guardanapo, que esta é a hóstia que levará no papo.
Tudo escrito e contabilizado, deves e haveres, a rentabilidade e a maximização dos lucros cairão nas valas comuns, como frutos podres, onde muitos padecem à custa de alguns. Chega de odres, sejam eles políticos ou sociais, chega de eventos paroquiais, de chalaças e carnavais, de comícios e pedinchices ao voto, chega da miséria alheia e do povo que verga. Chega dessa soberba, dessa demanda de escassez a quem trabalha, chega dessa migalha de nada. E chega da mesmisse que vos valha, da podridão politicamente correta, porque vos dá jeito. Chega de lodo vestindo trajes domingueiros, chega de trapaceiros, já chega de tudo que haveis construído. Já chega de esquerda e de direita e dos extremos. Bom senso é o que falta e homens a sério, comprometidos na construção do civismo. Agora, serão outras leis, outro reinado, cairão ditadores e supostos democratas, como vira-latas, chega de ceos e de ilusões mil, fecham-se as torneiras ao vil e a justiça começa a ser feita! Offshores e offdoors, offboys e offvacas. E chega de vileza e de mentira opaca. Que a sobremesa seja abril hostil, com um toque de malagueta severa. Chega de oportunismos e de malabarismos baratos! Agridoce e picante, venha depressa e seja alarmante, cause distúrbios e perturbações e que a coragem sirva os advérbios e as preposições, e que a inteligência sirva para conciliar bom senso e arquitetar novos moldes, homens novos, que se assente uma nova escola, um novo ensino, uma nova maneira de ver o mundo que este já não nos serve. Reserve. Que se colham jovens sadios e que com os talos do seu cérebro se produzam novos desafios, sem precisarmos de andar todos aos estalos, que a violência do homem é já sobrante, venha a de deus que será suficiente. Uma bela salada de consequências. E que depois da vindima e da lavagem dos cestos, se estabeleçam novas metas, se reestruture toda uma maneira de pensar-se humanidade. Que antes, saia do forno justiça divina, a da natureza que é vilã e justiceira, essa é a ideal para estancar o excesso, o retrocesso deste belo assado, quase pronto, e abra crateras e ceife o que há para ceifar. Que a virtude passa no meio, que sirva de esteio a esta nova leva de humanos, aos que vão governar. Sentem-se. A festa vai começar. Sente no prato que andou até agora a lavrar. As trombetas soarão. O jantar está a ser servido. Sirva-se frio.
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